Quando as guerras eclodem, os contendores, cada um de seu lado, tentam responsabilizar os inimigos pelo conflito. Quando elas terminam, cabe aos vencedores, com o êxito, ditar a versão que predomina. Em 1868, a rainha Isabel II, da Espanha, foi deposta. Em junho de 1870, o dirigente espanhol Juan Prim decidiu oferecer o trono de Madri ao príncipe prussiano Leopold Hohezollern-Sigmaringen, e encontrou o apoio do primeiro ministro da Prússia, o aclamado Otto von Bismarck. Como essa aliança entre a Espanha e a Prússia ameaçava a posição da França na Europa, os franceses determinaram a seu embaixador, Vicent Benedetti, que se entrevistasse com o rei da Prússia, Guilherme I, que se encontrava na localidade de Ems, no interior do país. O encontro foi cordial: o embaixador, em nome de seu governo, pedia ao soberano garantias de que essa aliança não significaria uma ameaça aos franceses. Um telegrama, com o teor da conversa, foi enviado a Bismarck. Bismarck reescreveu a mensagem, com a versão de que houvera insulto verbal entre o rei e o embaixador. No mesmo dia, divulgado essa versão do telegrama em Berlim e em Paris, acirraram-se os ânimos. Napoleão III, então soberano francês (Napoleon, le petit, segundo Marx), cinco dias depois – em 19 de julho – declarou guerra à Alemanha. Foi uma típica manobra de provocação, que encontrou no orgulho e na ilusão de seu próprio poder dos franceses, a resposta que Bismarck pretendia. O chanceler sabia que os franceses, não obstante sua superioridade de meios, não seriam capazes de mobilizar seus contingentes – e a Alemanha já tinha todos os seus movimentos preparados. Assim, em pouco mais de dois meses de campanha, a França foi derrotada, e Bismarck a humilhou, ao unificar os estados alemães sob a hegemonia de Berlim e coroar Guilherme I como Imperador da nova Germânia nos salões do Palácio de Versailles, em Paris.
Anteontem, sob o Arco do Triunfo, em Paris, Frau Merkel e Sarkozy celebraram o que definiram como a reconciliação entre os dois paises, ao lembrar os 91 anos do fim da Primeira Guerra Mundial que foi, de certa forma, a continuação da Guerra de 1870. A Alemanha não conseguira, com a vitória contra Napoleão III, a hegemonia continental. Mesmo derrotada, a França se reerguera com o grande desenvolvimento econômico que se seguiu, e continuava como a grande referência dos valores europeus. Muitos historiadores acreditam que Moeltke, o lendário comandante dos exércitos alemães, planejou toda a campanha da guerra de 1914. Ele havia construído os movimentos estratégicos da Alemanha em um possível conflito a Oeste, com a França e, a Leste, com o Império Russo. John Keegan, em seu estudo sobre a Primeira Guerra Mundial, inicia com a enigmática afirmação de que “the armies make plans”, e que uma vez estabelecidos esses planos, os militares se encarregam de criar os motivos para colocá-los em execução.
O fato é que o assassinato de um príncipe austríaco em Sarajevo deu aos alemães, aliados de Viena, o pretexto que desejavam, a fim de continuar o conflito anterior, em agosto de 1914. Oito milhões de combatentes – alemães, franceses, italianos, russos, ingleses e norte-americanos, mas também de outras nacionalidades – tombaram naqueles quatro anos e dois meses que durou a guerra. Seis milhões de civis também morreram no conflito que quebrou uma tradição, a de evitar a destruição de alvos civis. Os alemães, com os grandes canhões Krupp, destruíram a cidade de Liége, na Bélgica. O esforço aliado – com a participação, ainda que quase simbólica, nos meses finais da guerra, dos Estados Unidos – derrotou finalmente os alemães. Foi a vez de os franceses exercerem o orgulho da vitória. Um cartaz com o título soberbo de “On les a”, percorreu a Europa, mostrando um galo – símbolo do país – sobre a figura de um alemão caído.
Em 1939, Hitler retomava o projeto de Bismarck, alimentado também pelo desejo da revanche sobre a derrota de 21 anos antes. A cerimônia de 11 de novembro significa, realmente, a grande conciliação? Há uma coisa que incomoda: tanto em Berlim, quanto em Paris, cresce a intolerância contra os “extracomunitários”, e se discute a afirmação de uma “identidade européia” que deixa de ser a do humanismo, e se associa à limpeza étnica do continente, já defendida há quase 80 anos – a partir de Berlim. Ainda agora, a Holanda decidiu expulsar 26.000 refugiados de seu território, e outros países se preparam para fazer o mesmo.