4 de jan. de 2010

AS AMEAÇAS DE MADAME CLINTON


A senhora Clinton fez “duras advertências” aos paises latino-americanos para que não mantenham relações cordiais com o Irã, prevenindo que isso acarretará “sérias conseqüências”. Não se referiu diretamente ao Brasil, mas, sim à Venezuela e à Bolívia. Na realidade, o recado não é para Chávez, nem para Morales: é para Lula. Morales e Chávez, em sua posição diante de Ahmadinejad, repetiram slogans conhecidos, sem conseqüências maiores. Lula foi fundo, ao defender o direito de qualquer país a desenvolver sua tecnologia nuclear, enquanto os paises detentores dos segredos atômicos não se dispuserem a desarmar suas ogivas. Lula foi claro nessa posição de lucidez, no diálogo com a chanceler Ângela Merkel, da Alemanha, sob o olhar do mundo, em direto pela Televisão.

Há uma razão adjetiva para os avisos da Secretária de Estado. O Brasil com o desempenho do chefe de Estado, está ocupando grande espaço no mundo, enquanto - mesmo com Obama - os EUA voltam a ser os agressores de sempre. O jornal El Pais publicou elogioso perfil do presidente, assinado pelo Primeiro Ministro da Espanha, José Luiz Zapatero. Depois de traçar a trajetória humana de Lula, e de examinar os êxitos de sua política econômica, concluiu o Primeiro Ministro: “A mi no me extraña nada que este hombre asombre al mundo”.

3 de jan. de 2010

COPENHAGE E O MITO DE PALAMEDES



Palamedes é das personagens mais instigantes da mitologia grega. Rival de Ulysses e Diomedes na Guerra de Tróia, a ele se atribuem as primeiras idéias sobre o futuro do homem. Sendo visto como homem – e não como o titã Prometeu – ele pode ser considerado o pioneiro do desenvolvimento científico e tecnológico. De acordo com o mito, a ele coube a invenção do alfabeto, do sistema de pesos e medidas, do jogo de dados, do hábito de se comer a horas certas, da técnica de cunhar moedas, da divisão do dia em horas - e outras coisas mais. Platão (República, livro VII, 522) o cita como inventor da Aritmética, e lhe credita a sabedoria tática no cerco de Tróia.
Se houvesse tempo para isso, e a Conferência de Copenhague contasse com a assessoria de filósofos, seria interessante voltar a Palamedes e a Prometeu, para o início das reflexões sobre a Terra e o destino próximo do homem. Os gregos, que descobriram todos os caminhos, foram cautelosos no emprego da tecnologia. Talvez por causa da consciência da efemeridade da vida, que Heródoto resume, ao dizer que “o homem é, em tudo, e por tudo, um objeto do acaso”, e que o saber é resultado do sofrimento.
As grandes conferências internacionais servem – e nisso são importantes – para a discussão dos problemas e a divulgação das idéias e propostas, mas raramente trazem resultados práticos. No caso do meio ambiente há razões para o ceticismo. Há 37 anos houve a Primeira Conferência sobre o Meio Ambiente, promovida pelas Nações Unidas, em Estocolmo – bem perto de Copenhague. As circunstâncias me fizeram presente ao encontro, como correspondente deste jornal. Outras reuniões, entre elas a do Rio, em 1992, e a de Kyoto, trouxeram muitas esperanças, mas as esperanças esmaeceram com o tempo. Agora, ao que parece, os Estados Unidos e a China estão dispostos a assumir compromissos – o que renova a promessa de algumas medidas.
Voltar ao Paraíso, como pensam alguns ecologistas radicais, seria voltar a uma vida só suportável porque não havia alternativa. Hoje, depois que vivemos mais e melhor, graças à ciência e à tecnologia, ninguém de nossa civilização – a não ser alguns fanáticos – estaria disposto a conviver com as serpentes e os mosquitos, o corpo desnudo, comendo raízes e lagartos. Mas tampouco poderemos continuar contaminando os céus, os mares e o solo, a menos que estejamos resignados a morrer envenenados e soterrados pelos detritos. A ciência, que nos trouxe até aqui, poderá nos salvar, desde que deixe de ser mera servidora do sistema capitalista de produção e de apropriação privada dos resultados do trabalho comum.
O problema é essencialmente político. É necessário voltar a Palamedes, a seus pesos e medidas, a seus cálculos aritméticos, à administração das horas de cada dia e dos dias de cada existência humana. Com o respeito que merece a ciência, ela não poderá – como está ocorrendo – ditar a agenda histórica dos homens, a serviço do lucro. Quando - controlada pelo capitalismo industrial e financeiro - se transforma em tecnologia, costuma perder os parâmetros éticos. Talvez o desvio tenha surgido nestes dois últimos séculos, em que a ciência exata se afastou da filosofia e, ao se afastar da filosofia, desamarrou-se do humanismo que lhe dera origem, com a perversão do Iluminismo, denunciada pela Escola de Frankfurt.
A questão maior, e para a qual o conhecimento contemporâneo já oferece soluções, é a da energia. É estranho – e inquietador – que, no mesmo momento histórico em que surgem alternativas limpas ao petróleo, imensas jazidas são descobertas, no Brasil e no mundo. Um paradoxo dessa natureza e outros da atualidade, só serão resolvidos mediante o entendimento entre a ciência e a política. Para esse entendimento é preciso sabedoria, um dos recursos do homem que foi pouco usado e parece exaurido.
O Brasil é espaço crucial dessas discussões. Temos sido pioneiros no uso de recursos energéticos renováveis, como os da geração hidráulica de eletricidade. Mas os radicais, muitas vezes a serviço de interesses externos, querem nos impedir de construir hidrelétricas, como é o caso de uma Ong qualquer que incita os indígenas contra o governo. Os índios de Belo Monte “escreveram” uma carta a Lula, ameaçando um banho de sangue, se a construção da represa prosseguir. Cabe aos responsáveis pela segurança nacional identificar que “índios” foram os redatores do documento e encontrar o texto original, provavelmente em inglês.

UM ESTRANHO COMPORTAMENTO



O homem público não deve fazer negócios, nem o negociante fazer política. Quando o homem de negócios decide entrar para a vida pública, deve separar bem os dois interesses. Os mais prudentes entregam a direção de suas empresas a sócios ou subordinados de sua confiança, a fim de se dedicarem apenas aos assuntos públicos.
Há homens de negócios – e Sílvio Berlusconi é um deles – que acham fácil comprar seus mandatos (e, de forma direta ou indireta, os compram) como adquirem uma mansão residencial, um iate de 100 metros ou uma empresa de petróleo.
Desde que começou a reunir a grande fortuna que tem, Berlusconi é acusado de não ter escrúpulos, e de se associar à Máfia. Uma grande empresa brasileira de comunicações montou, nos anos 80, com transmissores em Mônaco, emissora de televisão que tinha seus estúdios em Roma. Não conseguiu crescer, nem mesmo manter-se no mercado. Sílvio Berlusconi, já poderoso senhor da televisão, parece ter contado com seus amigos de Palermo. Os equipamentos de retransmissão da TV Monte Carlo, como as de outros competidores eram sistematicamente danificados por desconhecidos no interior da Itália.
Há quem suspeite de que, no estranho comportamento de Berlusconi haja manifestação de demência precoce. Não parece normal a atração alucinada por call-girls, o uso de sapatos de solado alto, para aumentar a estatura, o hábito de enfiar o dedo no nariz em público e sugá-lo com a boca, e gestos semelhantes, além das sucessivas gafes políticas. É difícil acreditar em sua plena lucidez.

PAISAGEM SICILIANA



O motorista do pequeno ônibus de turismo parou, a um sinal do rapaz na beira da estrada estreita, no caminho de Ragusa. Pensei que o estranho iria embarcar, mas foi o motorista que, depois de nos pedir um minuto, desceu, ao encontro do outro. Ao voltar, nos disse que uma ponte caíra, à frente, e teríamos que esperar um pouco. O pouco foram duas horas. Só o chofer era da Sicília. Todos os outros vinham do norte da Itália, menos o casal de nossa idade, que era de Nápoles. Ao lado do caminho, na encosta de uma colina, os galhos dos olivais se moviam com o vento. Na margem esquerda ovelhas pastavam. O pastor as vigiava, sentado na carroceria de uma camionete velha. Mais adiante, quase na curva da estrada, que fechava a visão do Sul, havia 4 cruzes. Achei estranho que, em estrada tão estreita, que não permitia correr, tivesse havido um acidente com quatro mortos. Meu companheiro de viagem, napolitano, disse-me, baixinho, que os acidentes tinham sido de lupara (a cartucheira siciliana), não de veículos, e fez, com o indicador, o gesto conhecido de quem preme um gatilho.
Depois de uma hora de espera, começamos a ficar impacientes. A tarde chegava e, com ela, a fome. No carro só havia água. Nada nos indicava um lugar perto onde comprar o que fosse para comer. O motorista disse que esperava um sinal de que poderíamos avançar. A ponte era pequena, de madeira, e seria reparada logo. Mais algum tempo, outro homem apareceu e disse ao motorista que devíamos voltar. O motorista nos disse que aquele percurso da excursão estaria cancelado, a menos que quiséssemos fazer uma volta de 30 quilômetros. Retornamos à estrada principal, a caminho de Agrigento, onde pernoitaríamos.
No hotel, pela televisão, soubemos que houvera um acerto de contas na estrada, com três mortos em emboscada atribuída à máfia – mas ocorrida uma hora depois que mudamos o itinerário. No dia seguinte, o motorista havia sido substituído por outro. De Agrigento, seguimos para Palermo, por outra estrada.

CONFLITOS INTERMINÁVEIS



Uma interessante teoria – de que trata Bárbara Tuchman, em sua “The March of Folly: From Troy to Vietnam” - é a de que a Guerra de Tróia não terminou. A mítica expedição a Tróia, de que alguns arqueólogos encontraram escassos indícios, cresceu em grandeza graças a Homero (ou a rapsodos mais antigos, dos quais se teria valido o poeta).
Nessa tese histórica, as guerras nunca terminam: a exaustão as suspende, em tréguas demoradas, mas elas sempre retornam, porque os conflitos só poderiam ser resolvidos pelo bom senso. E o homem é animal insensato.
O editorial de Le Monde, de ontem, trata da rivalidade entre Paris e Londres, que voltam a disputar (se é que deixaram de disputar um dia) a hegemonia econômico-financeira européia. Os ingleses, conforme o diário francês, acusam a França de agir no propósito de substituir a City como centro financeiro mundial. E os franceses se defendem. Franceses e ingleses – sem contar com confrontos ainda mais antigos – se encontram nesse jogo de distanciamentos e aproximações desde o século 14, quando se iniciou a Guerra dos Cem Anos, que na verdade durou 116 (de 1337 a 1453). Novos confrontos viriam no decorrer dos séculos e, em um deles, Richelieu se revelaria também grande guerreiro, ao estabelecer o cerco ao bastião de La Rochelle, em poder dos huguenotes, sob patrocínio britânico. Em outro, Napoleão perderia seu bastão em Waterloo.
Ingleses e franceses souberam unir-se, no século passado, tanto para o bem, como para o mal. Para o bem, juntaram-se na Primeira Guerra Mundial e na Segunda. No intervalo, vergonhosamente cabisbaixos e amedrontados em Munique, diante de Hitler, traíram seus aliados tchecos.
Os ingleses aderiram à idéia da União Européia sem entusiasmo. Não aceitaram a moeda comum, o euro, o que foi grave restrição. Os observadores europeus mais argutos viram, nessas reservas, a fidelidade de Londres ao nacionalismo anglo-saxão: aderir plenamente à Europa, fortalecê-la, debilitaria a posição imperial dos Estados Unidos. Isso explica a posição de Mme. Thatcher, quando se opôs à reunificação da Alemanha, há vinte anos. Não militaram, para suas restrições, apenas as duas guerras do século passado, em que, unidos aos franceses, os ingleses enfrentaram os alemães. Houve também a intenção de manter a Inglaterra na situação privilegiada de parceira mais íntima de Washington na Europa. Uma Europa continental fortalecida que, eventualmente estará sob a liderança de uma ou outra nação, não interessa à visão de longo prazo do país que, desde a ocupação normanda, no século 11, ainda que historicamente assimilada, olha com desconfiança para além da Mancha.
A Suécia pretende assegurar o estatuto de cidade santa de Jerusalém, e garantir a parte leste da cidade para capital de um futuro Estado da Palestina. Insurge-se o país nórdico contra a “judeização” da cidade em que nasceu o cristianismo. Os palestinos têm sido expulsos sistematicamente de Jerusalém-Leste: no ano passado foram expelidos mais de 4.700. Esta é outra questão histórica que remonta às Cruzadas e a Ricardo Coração de Leão. Mas não deixa de se relacionar também com a Inglaterra moderna, em que surgiu o sionismo, e cujo governo deu apoio político à colonização da Palestina pelos judeus da Europa.
A Argentina busca agora o apoio da Península Ibérica em suas queixas contra a União Européia, que reconheceu a soberania inglesa sobre as Ilhas Malvinas. Isso tem significado econômico importante: os britânicos calculam que haja, no mar em seu entorno, reservas de mais de 60 bilhões de barris de petróleo. A Argentina, senhora das ilhas, foi expulsa do arquipélago em 1833, por tropas britânicas, mas nunca renunciou a seu direito de soberania, reconhecido, entre outras nações, pelo Brasil. As Nações Unidas, a partir de 1965, têm instado os ingleses e argentinos a um acordo sobre as ilhas, até então de pouco valor econômico, de solo gelado e sem árvores, varrido de ventos e só coberto de pastagens para ovelhas. Em 1982, a Argentina cometeu a imprudência de tentar recuperá-las militarmente, e foi delas mais uma vez rechaçada. Na época, o Brasil negou espaço aéreo aos aviões britânicos. Washington – ao esquecer a Doutrina Monroe, contra a presença de colônias européias nas Américas – recusou-se a repor material bélico aos argentinos, não obstante os acordos entre os dois paises.

OS DESPREZADOS SINAIS DE PERIGO


No exame dos processos revolucionários da História, nota-se sempre a falta de consciência das elites políticas. Como os movimentos levam décadas, com avanços e retrocessos, os episódios passam a ser rotineiros, e sempre se espera que o tempo administre a situação. Pouco a pouco, no entanto, como previne a lógica dialética, a quantidade se transforma em qualidade: os fatos, somando-se, exigem uma reação. Nos últimos anos temos assistido, no Brasil e no mundo, a manifestações de inconformismo da cidadania que deviam assustar. Deixando de lado o que se passa em outros países, porque a cada um basta o seu cuidado, a situação em nosso país merece reflexões.
Ontem, manifestantes ocuparam as dependências da Câmara Distrital, em Brasília, impedindo a sessão ordinária da casa. Há algum tempo, a própria Câmara dos Deputados foi invadida e depredada por manifestantes. Por enquanto são grupos pequenos, mas, a cada nova manifestação, os contingentes crescem. No Rio e em São Paulo, as ações armadas lembram confrontos insurrecionais. Não se pode dar conotação política clássica aos atos de violência do crime organizado, mas é sempre política, de uma forma ou de outra, a violência armada contra o Estado. Não adianta menosprezar os capitães do crime. Eles contam com pequenos exércitos, recrutados entre os que não têm futuro, sem estudos, sem afeto, sem esperança, e sem razões ideológicas que possam contê-los.
A corrupção é um crime, como qualquer outro. Quando se rouba do Estado, rouba-se da sociedade. A sociedade não é ente abstrato: é a soma dos indivíduos que trabalham e que, direta ou indiretamente, financiam as atividades públicas. É natural que cada um dos cidadãos se sinta, pessoalmente, roubado. Roubado do dinheiro que falta para cuidar de seus filhos, dar vida mais tranqüila à família, tomar sua cerveja aos domingos com os amigos, enquanto assiste a uma partida de futebol.
O presidente da República voltou a falar em uma assembléia nacional constituinte. Essa poderá ser a saída para dotar o Estado de instrumentos jurídicos que venham a tornar mais legítima a representação popular e a dificultar os atos de corrupção, concussão e peculato. Mas será difícil adotar regras hábeis de convocação da assembléia com o parlamento que temos. Se os cidadãos se decidissem a, mediante o instrumento da iniciativa popular, exigir do Congresso essa convocação, dentro das cautelas necessárias, talvez houvesse uma saída política para a crise ética que tende a agravar-se com o processo eleitoral.
Há, entre os servidores permanentes do Estado, os que se preocupam com a necessidade de reforma das instituições para o aprimoramento ético da administração. Em Salvador se reuniu, no fim de outubro, o XIV Congresso Internacional sobre a Reforma do Estado e da Administração Pública. Entre os representantes brasileiros se encontravam o ex-ministro do STF, Sepúlveda Pertence, e o padre Ernanne Pinheiro, assessor da CNBB, ambos membros da Comissão de Ética Pública do Governo Federal. Pertence, em sua exposição, mostrou os avanços, ainda tímidos, obtidos pela vigilância dos órgãos controladores do Estado, entre eles, a própria comissão de que faz parte. Apesar de tudo isso, nós sabemos que estamos longe de impor a moralidade na prática cotidiana da administração, em todas as esferas de governo.
A convocação de uma assembléia constituinte não traz a segurança de que a situação melhore, se os eleitores não entenderem que o país não é dos banqueiros, dos grandes proprietários rurais, nem das transnacionais, que hoje dominam os parlamentos. Ele é de todos os que trabalham e produzem, e até mesmo daqueles que não conseguem trabalhar.
A melhor forma de combater a podridão está na consciência de responsabilidade dos cidadãos que exercem algum tipo de influência sobre os pouco informados. É necessário criar grupos de discussão entre os vizinhos, examinar o quadro local, levantar o passado dos candidatos, e recomendar os que tenham um passado coerente e sério. Não é difícil saber como se estão comportando os parlamentares de hoje, e identificar os que mereçam a confirmação do mandato. É fácil saber quem defende o povo e a nação e os que vendem o país e seu mandato.
No passado, os corruptos estavam protegidos pelo segredo. Hoje a tecnologia já permite gravar cenas como aquela dos três “fiéis” pedindo a seu Senhor – que não o nosso – que os proteja em suas falcatruas. Chegamos ao limite da tolerância.

QUE SE SUBVERTA O CORAÇÃO


O historiador britânico Arnold Joseph Toynbee foi criticado por ser mais moralista e cristão do que observador objetivo do curso da ascensão e queda das civilizações. Ao contrário de Marx, que subordina a História à economia, e de Spengler, que identifica determinismo na condução dos fatos humanos, no interior de cada sociedade em particular, ele não vê as civilizações isoladas. Elas se comunicam, e cada uma delas tem alguma coisa a ver com as outras. Toynbee morreu certo de que as civilizações crescem com a esperança, quando se nutrem de forças espirituais, e decaem quando seus líderes esmorecem, perdem o elã criativo, desistem da continuidade no tempo.
Quando já passara dos setenta anos, (entre 1961 e 1964), Toynbee fez as suas últimas viagens de trabalho à África. Ele se interessara pela História em Atenas, quando era ainda muito jovem e fora estudar na Grécia. Passado mais de meio século, atravessou o Mediterrâneo para examinar a diferença entre as duas Áfricas, a árabe e a negra. Seu livro, publicado inicialmente na Inglaterra, sob o título de “Between Niger and Nile” (Oxford University Press, 1965), é quase um trabalho jornalístico. Nele analisa o drama dos povos do continente, em seu esforço por livrar-se do colonialismo e, nos paises já independentes, das suas seqüelas.
No prefácio da edição francesa do livro, redigida em 26 de junho de 1972, três anos antes de morrer, Toynbee afirma que “a mais profunda necessidade da África, e, assim, do mundo, é a de que se revolucione totalmente o coração” do homem. Essa advertência, quase uma prece, cabe em situação não prevista por Toynbee naquele texto: o encontro de Copenhague. Os líderes do mundo estão em um daqueles momentos estudados por Toynbee, nos quais a sobrevivência da civilização depende da coragem de conduzir as mudanças capazes de preservar as conquistas do passado e assegurar o melhor da cultura construída. É disso que se trata. Por mais estejam presentes, na velha Dinamarca, os conselhos da ciência, o problema real está no coração dos homens.
Se fôssemos capazes de examinar a civilização atual com olhos estrangeiros, seria difícil nela encontrar alguma lógica. É uma civilização que rompe com o Humanismo que a fez surgir e que a sustentou, seja em nome da fé, seja contra a fé, durante os últimos vinte e cinco séculos. Muitos defendem a sociedade industrial que surgiu, com o refino do petróleo, há um século e meio, como um benefício fabuloso para o homem. Hoje podemos viajar rapidamente de um continente a outro. Não só vivemos mais tempo, com o progresso da medicina, como vivemos mais no tempo. Os instrumentos de comunicação e as máquinas industriais nos permitem produzir em uma hora mais do que em dias, durante o passado. De repente descobrimos que estamos envenenando a nossa casa e não temos outra disponível.
Os cientistas apontam caminhos para salvar o planeta do aquecimento provocado pela atividade humana. Mas esses caminhos, todos a partir da possibilidade de substituir os combustíveis fósseis por fontes limpas de energia, podem resolver um dos problemas, mas não todos. Temos que encontrar outros módulos para a vida, e isso depende da revolução nos sentimentos do homem, na subversão que sobreponha a solidariedade real, o humanismo real, ao egoísmo que se exacerba na ânsia de lucro do capitalismo contemporâneo.

NOVAS PROVAS DE UM CRIME


Começa-se a provar, agora, o que muitos sabiam, e alguns de nós denunciamos: antes dos atentados de 11 de setembro de há oito anos, os Estados Unidos já planejavam invadir o Iraque e eliminar Saddam Hussein. Entre os mais irados defensores dessa decisão de extermínio se encontrava a Senhora Condoleeza Rice. É provável que, daqui a pouco, saibamos muito mais sobre o atentado contra o World Trade Center, e é bom preparar o espírito para o horror que nos podem trazer as revelações.
Não é segredo para as pessoas bem informadas que a eleição do segundo Bush foi precedida de uma conspiração chefiada por Paul Wolfowitz, Richard Perle, Donald Rumsfeld e Dick Chenney, com o famoso Projeto para o Novo Século Americano, elaborado ainda em 1997. O documento é claro em seu objetivo de estabelecer um duradouro império dos Estados Unidos sobre o mundo, ao aproveitar-se da queda do sistema socialista. Mas previne que, para seu êxito, faltaria um fato extraordinário e dramático que empolgasse e unisse toda a sociedade americana. Esse fato ocorreu, menos de nove meses depois da posse de Bush, com os atentados de 11 de setembro. Como as coincidências têm raízes – conforme o estudo de Koestler – é preciso cavar no solo da História para ver as que ligam os falcões de 1997 à destruição das torres de Manhattan quatro anos depois.
Agora surgem novas provas (porque as evidências já haviam sido identificadas) de que Saddam Hussein já desmantelara todas as suas armas de destruição em massa, desde 1991. O inquérito britânico sobre o envolvimento do país na guerra contra o Iraque, chefiado por John Chilcot, membro ativo do Conselho Privado da Rainha, mostra que muito antes de setembro de 2001, membros dos serviços de inteligência dos Estados Unidos e da Inglaterra discutiram como eliminar Saddam, mas seus superiores os dissuadiram, porque isso estava contra a lei. Meses antes dos ataques de setembro, o encarregado pela ONU de inspecionar o desarmamento do Iraque, Hans Blix, comunicara ao governo britânico que nada havia a temer, e que Saddam acabara com as instalações suspeitas. Ainda assim, criou-se a fantástica versão de que ele dispunha de meios para, em 45 minutos, destruir qualquer um dos países vizinhos, insinuando-se que o alvo seria Israel.
“O sistema de inteligência falhou no Iraque” – disse ontem, a John Chilcot, Tim Dowse, um dos altos responsáveis pela estratégia política do Foreign Office durante o governo Blair. Os Estados Unidos foram à guerra contra Hussein, com o primeiro Bush; continuaram a agressão com Clinton; invadiram o Iraque com o segundo Bush por causa do petróleo, e não em razão da alegada crueldade do dirigente muçulmano. Quando se discute a natureza não democrática dos governos islamitas, como o do Iraque, do Afeganistão e do Irã, todos se calam sobre a Arábia Saudita, cujo regime sempre foi o mais obscurantista de todos. A razão é simples: os sauditas são aliados incondicionais dos anglossaxões - desde a Primeira Guerra Mundial - contra os seus vizinhos, menos despóticos no exercício do poder autocrático. Nesse aspecto, o Iraque era o mais liberal dos regimes islamitas, na tolerância com os costumes e com as outras crenças religiosas. Todos se lembram de que seu vice-presidente e encarregado das relações internacionais era Tarik Aziz, um cristão católico, que se encontra preso em Bagdá.
Não obstante essas evidências, o governo norte-americano, sob Obama, não parece disposto a reconhecer a responsabilidade de seus predecessores pelos atos criminosos. É provável que, na próxima terça-feira, anuncie o envio de mais tropas para o Afeganistão, segundo o New York Times. Seja pela pressão dos círculos mais poderosos de seu país, seja pelo temor de cumprir o que prometera em sua campanha, desvia-se para a direita, e se submete ao complexo industrial-militar que dita a política bélica dos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial.
Esse retorno ao belicismo não se limita ao Oriente Médio e à bacia do Cáspio. Além das bases da Colômbia (que os Estados Unidos consideram vitais para “controlar a América do Sul” desde que, a partir delas, podem atingir qualquer ponto do continente) o Pentágono pretende instalar bases no Peru, o que nos diz respeito. É preciso pensar no Iraque e em Saddam, quando se intensifica a campanha contra o Irã, com a repetição dos mesmos movimentos. A única forma de promover a paz e evitar o sacrifício de gerações inteiras, é respeitar o direito de autodeterminação e desenvolvimento de todos os povos

PERFIL DO AMIGO


De vez em quando lhes conto, neste espaço, alguns episódios de minha amizade com Granadeiro, orgulhoso vira-lata, cego de um olho (que perdeu em luta com algum bicho feroz, e eu suponho que tenha sido um tamanduá-bandeira), mas com seu charme especial, posto que invariável namorador. Todos os cães que conheci, antes e depois dele, só se interessavam pelas fêmeas no cio. Granadeiro não era assim. Mesmo com o risco de ser rejeitado, era terno e carinhoso com todas as cadelas que cruzavam seu caminho, em qualquer hora. Aproximava-se com jeito, e lhes roçava e cheirava o focinho (não fazia como os outros); rosnava, com ritmo, como se entoasse uma balada irlandesa. Chegada a hora da partida, voltava a cara muitas vezes para trás, saltava como um nijinsky de seu povo, e caminhava lentamente, dando, assim, recados de saudade, sem esquecer o dever de acompanhar o amigo de viagem sem rumo.
Nós nos entendíamos com o olhar. Ele sabia quando eu estava preocupado, com as provisões do embornal diminuindo, sem sinais de morador por perto. Vinha, lambia minhas mãos, e saia apressado, sentindo o vento. Daí a algum tempo, voltava, rosnava, e me intimava a segui-lo. Seu faro para torresmo, ovos e feijão, base da solidariedade dos pobres, era infalível. Havia sempre um rancho diante de seu focinho, com alguém de bom coração para nos saciar e ouvir minhas histórias. Sempre vivi disso. Seu faro ia ao coração: nunca, naqueles anos de companheirismo, conduziu-me a alguém que não prestasse. Acho que ele era protegido por um anjo canino, um cachorrinho de asas que o ajudava a ajudar-me – e que devia se entender com o meu próprio anjo da guarda, como Granadeiro e eu nos entendíamos. Assim sendo, e andando à frente, às vezes saía da trilha e se embrenhava no mato. Eu o seguia, porque bobo não era. Assim me desguiava dos capões espessos, das encostas pedregosas em cujas grutas as onças partejam e protegem suas crias. Confesso que era meio fedorento, situação que eu remediava, sempre que podia, lavando-o em águas limpas das veredas, com sabão preto e buchinha de folhas de arnica, arruda ou alecrim do campo.

ALDO MORO, BATTISTI, E O "COMPROMISSO HISTÓRICO"


O caso Battisti evoca trágica experiência política do século passado. Os episódios de 1978, que causaram a morte de Aldo Moro, ocorreram diante da insanidade dos extremos e da incapacidade de as elites se reunirem no centro político, que Berlinguer e Moro propunham com o seu Compromisso Histórico.
Moro era um católico que estava à esquerda de De Gasperi e de Giulio Andreotti, próximo de pensadores franceses identificados na esquerda, como Jacques Maritain – que provavelmente conhecera, quando o filósofo tomista fora embaixador junto ao Vaticano, entre 1945 e 1948. Ele temia que o confronto ideológico, no movimento católico, impedisse o governo de centro na jovem república italiana. Como líder de sua corrente – a dos “doroteanos”, que dispunha de ponderável votação, Moro participou dos governos democrata-cristãos até 1976, quando a ala direita se impôs com a entrega do governo a Giulio Andreotti, seu principal adversário. Entre 1976 e 1978, Moro articulou a retomada do entendimento entre os comunistas e os democratas cristãos em busca de uma saída histórica, proposta por Enrico Berlinguer em 1973. O entendimento era combatido com vigor por Andreotti, pelo Vaticano, pela Máfia e pelos Estados Unidos.
Havia doze anos que, com a criação da República, e o confronto entre as duas correntes partidárias, sob a influência das duas superpotências, a Itália estivera à margem da guerra civil. Em 1978 – com a reabilitação do pensamento de Gramsci, e dez anos depois da invasão de Praga, que eles combateram – os comunistas italianos já estavam muito mais distantes dos soviéticos na construção do diálogo com os cristãos e do eurocomunismo. A situação estava madura para que a Itália se livrasse dos efeitos da guerra fria e buscasse um projeto nacional de desenvolvimento e de presença mais forte na Comunidade Européia que se formava. Nos meses que antecedem o seqüestro e a morte de Aldo Moro surge o estranho movimento das Brigadas Vermelhas. O grupo, conforme voz corrente, era liderado pela chefia misteriosa de um Gran Vecchio. Embora, na época, Andreotti não tivesse ainda 60 anos (nascera em 1919) seu porte encurvado dava-lhe aparência bem mais idosa. Há indícios de que as Brigadas teriam sido criadas por Andreotti, com a ajuda da Máfia, da CIA, e dos serviços secretos italianos, a fim de impedir, com atos de terrorismo, o “Compromesso Storico”, de centro-esquerda. Dele foi aliado intransigente Francesco Cossiga, hoje irado defensor da extradição de Battisti.
A quem, realmente, serviam as Brigadas Vermelhas, que seguiam, na retórica política, a Rote Armee Fraktion, do grupo Baaden-Meinhof da Alemanha? Sabe-se, pelo relato dos seqüestradores de Moro, que os dois grupos se encontraram algumas vezes em Paris, mas os italianos tinham meta precisa: combater o entendimento entre comunistas e os democratas-cristãos de Moro. Qualquer amador em política poderia deduzir que o seqüestro de Moro, por um grupo que se apresentava como de esquerda, seria um grande trunfo para a direita. É sempre bom lembrar o exemplo do agente cabo Anselmo, aqui no Brasil. Os brigadistas queriam a liberdade de 13 dos seus, em troca da vida de Moro. Cossiga e Andreotti a isso se opuseram, apesar dos apelos dramáticos do ex-primeiro ministro ao governo e até ao Papa Paulo VI, de quem era amigo pessoal.
Battisti pertencia a um grupo à margem das Brigadas Vermelhas, mas a serviço do mesmo objetivo. É provável que esse grupo fosse constituído de fanáticos, que agiam sem outras ligações, ou de simples inocentes úteis, recrutados pelos seguidores del Gran Vecchio. Em qualquer caso, foi instrumento de interesses muito maiores do que ele, muito maiores do que os do pequeno bando de alucinados de que fazia parte. Com seus vagos ideais aos 22 anos, ou cooptado pelos agentes da direita, dissimulados como de esquerda, o que é comum, é um homem acabado, condenado à prisão perpétua e à privação do sol. É provável que o Presidente Lula esteja informado dessas circunstâncias históricas, na hora de decidir o destino de Battisti.
Em tempo: Andreotti foi condenado, em 2002, a 24 anos de prisão por ter, em associação com a Máfia, mandado matar o jornalista Mino Pecorelli, que iria publicar documentos provando seu envolvimento no assassinato de Moro. Tendo em vista sua idade, a Suprema Corte livrou-o da cadeia.

A CERIMÔNIA DE PARIS



Quando as guerras eclodem, os contendores, cada um de seu lado, tentam responsabilizar os inimigos pelo conflito. Quando elas terminam, cabe aos vencedores, com o êxito, ditar a versão que predomina. Em 1868, a rainha Isabel II, da Espanha, foi deposta. Em junho de 1870, o dirigente espanhol Juan Prim decidiu oferecer o trono de Madri ao príncipe prussiano Leopold Hohezollern-Sigmaringen, e encontrou o apoio do primeiro ministro da Prússia, o aclamado Otto von Bismarck. Como essa aliança entre a Espanha e a Prússia ameaçava a posição da França na Europa, os franceses determinaram a seu embaixador, Vicent Benedetti, que se entrevistasse com o rei da Prússia, Guilherme I, que se encontrava na localidade de Ems, no interior do país. O encontro foi cordial: o embaixador, em nome de seu governo, pedia ao soberano garantias de que essa aliança não significaria uma ameaça aos franceses. Um telegrama, com o teor da conversa, foi enviado a Bismarck. Bismarck reescreveu a mensagem, com a versão de que houvera insulto verbal entre o rei e o embaixador. No mesmo dia, divulgado essa versão do telegrama em Berlim e em Paris, acirraram-se os ânimos. Napoleão III, então soberano francês (Napoleon, le petit, segundo Marx), cinco dias depois – em 19 de julho – declarou guerra à Alemanha. Foi uma típica manobra de provocação, que encontrou no orgulho e na ilusão de seu próprio poder dos franceses, a resposta que Bismarck pretendia. O chanceler sabia que os franceses, não obstante sua superioridade de meios, não seriam capazes de mobilizar seus contingentes – e a Alemanha já tinha todos os seus movimentos preparados. Assim, em pouco mais de dois meses de campanha, a França foi derrotada, e Bismarck a humilhou, ao unificar os estados alemães sob a hegemonia de Berlim e coroar Guilherme I como Imperador da nova Germânia nos salões do Palácio de Versailles, em Paris.
Anteontem, sob o Arco do Triunfo, em Paris, Frau Merkel e Sarkozy celebraram o que definiram como a reconciliação entre os dois paises, ao lembrar os 91 anos do fim da Primeira Guerra Mundial que foi, de certa forma, a continuação da Guerra de 1870. A Alemanha não conseguira, com a vitória contra Napoleão III, a hegemonia continental. Mesmo derrotada, a França se reerguera com o grande desenvolvimento econômico que se seguiu, e continuava como a grande referência dos valores europeus. Muitos historiadores acreditam que Moeltke, o lendário comandante dos exércitos alemães, planejou toda a campanha da guerra de 1914. Ele havia construído os movimentos estratégicos da Alemanha em um possível conflito a Oeste, com a França e, a Leste, com o Império Russo. John Keegan, em seu estudo sobre a Primeira Guerra Mundial, inicia com a enigmática afirmação de que “the armies make plans”, e que uma vez estabelecidos esses planos, os militares se encarregam de criar os motivos para colocá-los em execução.
O fato é que o assassinato de um príncipe austríaco em Sarajevo deu aos alemães, aliados de Viena, o pretexto que desejavam, a fim de continuar o conflito anterior, em agosto de 1914. Oito milhões de combatentes – alemães, franceses, italianos, russos, ingleses e norte-americanos, mas também de outras nacionalidades – tombaram naqueles quatro anos e dois meses que durou a guerra. Seis milhões de civis também morreram no conflito que quebrou uma tradição, a de evitar a destruição de alvos civis. Os alemães, com os grandes canhões Krupp, destruíram a cidade de Liége, na Bélgica. O esforço aliado – com a participação, ainda que quase simbólica, nos meses finais da guerra, dos Estados Unidos – derrotou finalmente os alemães. Foi a vez de os franceses exercerem o orgulho da vitória. Um cartaz com o título soberbo de “On les a”, percorreu a Europa, mostrando um galo – símbolo do país – sobre a figura de um alemão caído.
Em 1939, Hitler retomava o projeto de Bismarck, alimentado também pelo desejo da revanche sobre a derrota de 21 anos antes. A cerimônia de 11 de novembro significa, realmente, a grande conciliação? Há uma coisa que incomoda: tanto em Berlim, quanto em Paris, cresce a intolerância contra os “extracomunitários”, e se discute a afirmação de uma “identidade européia” que deixa de ser a do humanismo, e se associa à limpeza étnica do continente, já defendida há quase 80 anos – a partir de Berlim. Ainda agora, a Holanda decidiu expulsar 26.000 refugiados de seu território, e outros países se preparam para fazer o mesmo.

ALÉM DE UM JULGAMENTO

A retomada do julgamento, pelo STF, do pedido de extradição de Césare Battisti, deve ser analisada sem emoção, o que não é fácil. Há, no caso, o interesse do estado italiano, e, a ele se contrapondo, o interesse de nosso país. Se não os houvesse, os juízes atuariam conforme os seus sentimentos naturais de simpatia ou aversão diante do réu, conforme as provas apresentadas e a legislação pertinente. Assim costuma ser, desde o julgamento mitológico de Orestes, matricida que as Fúrias queriam punir e que a proteção de Apolo e da deusa Atena absolveu, ao influir na decisão dos seres humanos que constituem o tribunal, conforme a trilogia de Ésquilo.
Também aquele julgamento poderia ser interpretado como “político”, uma vez que Orestes não estava sendo julgado apenas por ter matado a mãe e seu amante. Ele havia exercido vingança política contra os assassinos de um rei e usurpadores do trono. Em Les Mouches, versão de Sartre do mito, essa razão política foi clara, e se associou à situação da França sob ocupação alemã em 1943, quando a peça foi encenada. Orestes encarnava, na metáfora sartreana, a Resistência Francesa. Ao que parece, e felizmente para Sartre, os alemães não entenderam a alegoria.
Deixando de lado a dúvida se o STF devia ou não decidir sobre esse ato do Executivo, uma vez que, ao ser provocado, o alto tribunal, em qualquer situação, é quem diz se é ou não competente, cabe, sim, discutir o problema da intromissão do governo italiano. Se o governo atual da Itália fazia da extradição uma questão de honra nacional, cabia-lhe agir pelos canais diplomáticos, e com discrição. Podemos admitir a sua pretensão de punir, de acordo com suas leis, alguém que considera um subversivo que teria agido como assassino comum. O que não podemos tolerar, é a arrogância dos italianos, que se dirigiram aos brasileiros como se fôssemos uma república bananeira ou feitoria do litoral africano.
As ofensas foram intoleráveis. Como se recorda, elas não se limitaram a criticar a decisão do asilo concedido a Battisti: chegaram a insultar o nosso povo. O deputado da Liga Norte, Ettore Pirovano, disse que não éramos um país conhecido por seus juristas, mas, sim, pelas suas dançarinas. O governo Lula tem sido paciente com os italianos. Podemos arriscar que Juscelino, em seu lugar, não só teria suspendido as relações diplomáticas, até receber as necessárias desculpas de Roma. E se estivesse no Planalto alguém da têmpera de Floriano Peixoto, as relações seriam rompidas no ato.
O que está em discussão é mais do que o destino de um homem, seja ele culpado em sua terra ou inocente dos crimes que lhe atribuem. Isso não é o mais importante, quando se trata da soberania do Estado brasileiro e da dignidade de nosso povo. A protérvia dos italianos não pode ficar sem resposta. O governo “exemplar” de Berlusconi cometeu erro crasso, ao reagir, como reagiu, à decisão de nosso Ministro da Justiça. Ao fazê-lo, provocou a natural reação de muitos setores da vida brasileira, que seriam indiferentes à sorte de Battisti. E levou esse erro ainda mais longe, ao dirigir-se ao Supremo Tribunal Federal para, nele, contestar uma decisão do poder executivo nacional. Se ele recorresse ao Tribunal de Haia, acataríamos, com todo o respeito, o seu direito em fazê-lo. Tanto é assim que o anúncio do governo de fato de Honduras, de que recorreria à Corte de Haia contra o Brasil, não causou qualquer espanto.
Bater às portas da nossa Suprema Corte como fizeram os italianos, é aleivosia sem precedentes em nossas relações externas. E essa atitude não se modificou. Ao enviar ao Brasil seu representante, Ítalo Ormanni, chefe do Departamento de Justiça do Ministério da Justiça Italiana, a fim de assistir ao julgamento, Roma reafirmou a intenção de constranger os ministros do Supremo com a sua presença.
Conforme a interpretação de eminentes juristas, a decisão do STF, nesse caso, não é a final. O Presidente da República pode agir conforme lhe facultam a Constituição e as leis, e negar a extradição, sem que isso seja ato de hostilidade contra o Supremo.
É estranho que muitos se sintam preocupados com a Itália. Sob Berlusconi, os governantes de um país que conheceu alguns momentos de esplendor na Historia, não se encontram em condições de dar lições a quem quer que seja.

A EUROPA E A LIBERDADE



Aparentemente, com as solenidades em Berlim, saúda-se o advento da liberdade na Europa, depois das experiências dramáticas do século passado, com o totalitarismo e as guerras. Há, sem embargo, que perguntar de que liberdade se trata, e de que Europa se trata. Nunca fomos capazes de definir exatamente o que seja liberdade, uma idéia identificada com a concepção do convívio no Ocidente, cuja origem situamos na Grécia dos séculos V e IV antes de Cristo. Mas a liberdade grega foi instrumento político, idéia motora para a construção de um estado nacional capaz de se preservar contra os inimigos vizinhos. Sem a consciência de que participavam efetivamente da coisa pública, e que tinham bem maior a defender, os atenienses não teriam resistido aos persas, embora depois disso não tenham conseguido vencer os espartanos e, menos ainda, dos macedônios. O grande mérito dos gregos foi o de transferir essa idéia de liberdade para o Ocidente, onde ela triunfou por pouco tempo na República Romana, para hibernar durante mais de um milênio, até o Renascimento.
A liberdade só existe se for ativa, isto é, se servir para o homem exercer sua vontade, não apenas no domínio da vida pessoal, mas no conjunto da sociedade. Por isso, os gregos desdenhavam os conformistas, os que não participavam das decisões coletivas. Esses, ao não exercer a liberdade, a desmereciam. Eram, em sua indolência política, submissos à vontade alheia. A liberdade é, assim, um sentimento ativo. Não é uma situação que se aceita, mas que se constrói. Para lembrar o texto clássico do Santo Tomás de Aquino, a propósito do pensamento político de Aristóteles, é alguma coisa que edificamos enquanto nela pensamos, por isso, a política é uma ciência (ou seja, um conhecimento) moral, e não técnico. Isso quanto à liberdade. E o que podemos entender como Europa? A unidade continental tinha duas idéias básicas. Uma era a da libertação do totalitarismo, outra, a recuperação do poder espiritual do continente sobre o mundo, mediante a reconstrução de sua economia e de seu saber. Nesse sentido, a União Européia foi o resultado da consciência de uma necessidade histórica, trabalhada por alguns excepcionais homens de Estado, de um lado e do outro do Reno.
A queda do muro de Berlim favoreceu a expansão da União Européia, que nascera como a Europa dos Seis em 1957, com o Tratado de Roma. Essa ampliação, sem embargo, vem trazendo problemas de identificação do que seja hoje a Europa, e o que sejam as sociedades nacionais que a integram. A unificação não é completa, começando com o problema da moeda única. Para os ingleses, a libra é, como a monarquia, símbolo sagrado de soberania. Mas não se cinge à Europa a grave crise do homem contemporâneo. Os Estados Unidos estão se confrontando com o mesmo problema de identidade. O major que matou os seus companheiros de farda de Fort Hood é, ou não, um americano? Ele matou concidadãos, ou atirou em inimigos do Islã? A grande vantagem dos Estados Unidos é a de ser, desde os peregrinos do século 17, uma pátria pela escolha, não pela fatalidade do nascimento. Daí o seu extremo nacionalismo: todo Ersatz é sempre mais exacerbado do que o modelo. Essa realidade começa a ser posta à prova. Não teria o major matado simplesmente por fadiga de viver em uma sociedade corroída pelo egoísmo? Os adolescentes que matam seus colegas, lá e alhures, por que o fazem? De acordo com eminentes psicanalistas, quando alguns homens odeiam os outros homens, de forma geral, é porque, no fundo, odeiam-se a si mesmos. Todo assassino é suicida, e todo suicida, um assassino.
Segundo os moralistas da escola que expulsaram uma aluna em São Paulo, ela vestia roupas provocantes. Qual é a escala que separa a sedução da provocação? Quais são os limites para que uma pessoa possa expor ou não o seu próprio corpo? Em uma sociedade erotizada, principalmente pela propaganda comercial, que usa o corpo feminino como apelo de consumo, é natural que muitas mulheres se sintam estimuladas a vestir-se como os modelos dos anúncios. Em nosso tempo, o apelo ao erotismo está em quase toda parte, na música, na literatura, na televisão e no cinema.
Têm sido freqüentes os atos de intolerância contra os alunos diferentes, seja pela cor, pela condição social, pelas dificuldades de locomoção ou de expressão. É hora de colocar limites severos a esses atos estúpidos – em nome da essencial liberdade de ser.

A LIBERDADE E OS MUROS


Tenho as minhas memórias pessoais do muro de Berlim. Quando ele se levantou, minha mulher e eu visitamos a Alemanha Oriental e me explicaram a providência como forma de impedir o desastre econômico: os habitantes de Berlim Ocidental, recebendo em dinheiro do Ocidente capitalista, trocavam por marcos orientais, no câmbio negro, atravessavam as ruas e se abasteciam de tudo no mercado socialista, com preços administrados pelo Estado. Não só se abasteciam as famílias, como os pequenos comerciantes. Isso causava grave problema para a economia socialista. Não deixava de ser uma explicação. Além disso, havia os cidadãos de Berlim Oriental que atravessavam para o outro lado, todos os dias, a fim fazer o contrabando no sentido inverso, de drogas e artigos de luxo.
Quando o muro caiu, nós vivíamos em Roma. A sua demolição, que antecedeu a queda do sistema soviético, foi saudada como nova era de felicidade no mundo – menos para alguns. Já se sabia que houvera poderosa conspiração internacional entre Reagan e o papa Wojtyla, envolvendo o Banco Ambrosiano, a C.I.A. e o Solidarinosc, com a cumplicidade de Gobartchev, contra os países socialistas. O resultado é conhecido: o sistema soviético se desfez e o homem da glasnost e da perestróika pôde sentir-se realizado, como garoto-propaganda de pizzas e de bolsas Louis Vuitton, nos meios de comunicação dos Estados Unidos.
Ainda nestes dias, os chineses descobriram um trecho considerável da Grande Muralha, que ficou oculto durante séculos. Era uma proteção contra os inimigos. As cidades medievais eram cercadas de muros, como ainda podem ser vistos. Um longo muro separa o México dos Estados Unidos e outro, de grandes proporções, separa Israel dos territórios palestinos. A sua construção, queiram ou não, obedece às mesmas razões pelas quais os alemães do leste erigiram o seu. No Rio, pretendem levantar cercas, a fim de controlar as favelas. Os novos e ricos condomínios urbanos brasileiros se fazem cercar de muralhas, protegidas eletronicamente, com sentinelas atentas e armadas, de trecho a trecho, imitando a famosa Linha Maginot, que os alemães desdenharam, ao invadir a França pela Bélgica. Estamos todos cercados de muros, circulamos nas cidades dentro de veículos – que são muralhas de aço blindado; no alto dos edifícios, em seus corredores, nos elevadores, as câmaras vigiam, como as seteiras das antigas muralhas. As muralhas mais sólidas e impenetráveis são as ocultas, que separam os homens ricos dos homens pobres. Um longo e invisível muro – semelhante à linha de Leibniz – passa pelas ruas, penetra as igrejas e ladeia os pontos, ou seja, as pessoas, deixando, em campos separados, por mais próximos pareçam estar, uns homens e os outros.
Recentes estudos do IPEA dividem a sociedade brasileira em três classes de renda. As duas classes inferiores são tão inferiores que é um absurdo considerá-las estatisticamente. A terceira – que, segundo o IPEA é a de renda individual mais alta – começa com o salário mínimo atual. Assim, de acordo com esse critério, uma família de quatro membros com a renda total de dois mil reais se encontra na faixa mais alta de renda. Mas, não obstante a conclusão estatística, altíssimo muro as separa da minoria de renda realmente alta no país.

A PLATAFORMA DO CANDIDATO



O recente artigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso parece ter como único objetivo sua candidatura à Presidência da República. Observadores atentos da situação política suspeitam que, por detrás da indecisão do PSDB em escolher entre o governador de São Paulo e o governador de Minas, haja manobra do próprio Fernando Henrique, talvez com a aquiescência de Serra. Ambos atuariam como servidores dos poderosos interesses de São Paulo. Diante do impasse entre Aécio e Serra, e do provável crescimento da candidatura de Ciro e – quem sabe? - da própria Dilma, a saída seria a ida de alguns próceres do PSDB e de outras agremiações ao escritório político do ex-presidente, instalado com doações de empresários, no final de seu governo. Ali, apelariam para o patriotismo paulista de sua excelência, a fim de recuperar o poder.
O presidente Lula tem sido beneficiado pelas circunstâncias, o que não é mau. Mas é inegável que ele é sincero na luta pela redenção de milhões de famílias pobres às quais, durante a história do País, foram negados o conhecimento, a dignidade e os salários justos. Ele conseguiu isso sem provocar a reação dos empresários inteligentes, que descobriram um mercado de consumo que não conheciam: o do próprio país. O reconhecimento popular pode ter inflado as velas do barco de Lula, que se sente estimulado a, tal como Pico de la Mirandola, discorrer sobre todos os assuntos e mais alguns. Mas, nisso, ele tem ótimo modelo no próprio weberiano Fernando Henrique. Trata-se de pecado menor, e, no caso de Lula, justificável em sua inigualável biografia de vitorioso. Ele, pelo menos, não se considera “mais inteligente do que vaidoso”.

O artigo de FHC é uma plataforma de candidato, com argumentos anacrônicos. Ele e outros identificam o “discurso ultrapassado dos anos 50” nos nacionalistas de hoje. Mas repete os de Lacerda contra Jango, no caso da falsa Carta Brandi, em que se denunciava (também) o propósito de instalar-se, no Brasil, uma república sindicalista sob molde peronista.
Há quem veja em seu artigo apenas a expressão de preconceito de intelectual contra o torneiro mecânico que está dando certo – mas isso seria reduzir a inteligência do acadêmico. É melhor deduzir que seu objetivo é mesmo o de se por como tertius na disputa. Ele já tentara a mesma manobra, na segunda eleição de Lula, quando dificultou a candidatura de José Serra, em favor de Geraldo Alkmin. Sabe que Serra poderá, sem dificuldades maiores, reeleger-se para o Palácio dos Bandeirantes. Entende que, sem a unidade do partido em torno de Serra ou de Aécio, faltarão votos para vencer o pleito. E – aí está o pulo do gato – sabe também que, para alguns empresários paulistas, nada melhor do que ter representantes tanto no Morumbi, quanto no Planalto.
O ex-presidente duvida da memória de seus leitores, que não se esquecem do que foram as privatizações e o uso dos fundos de pensões, na operação que tornou o Sr. Daniel Dantas um dos homens mais poderosos do Brasil. Quanto à Vale do Rio Doce, a nação compreenderia o seu silêncio, se ele evitasse tocar no assunto. Nunca, desde el rei dom Manuel, houve doação de bem público de tal monta a um grupo de favoritos.
Os interesses de São Paulo - também representados no governo Lula - conduzem a União há quase 16 anos, em violação ao pacto republicano da igualdade entre os Estados, e continuarão por mais 8 anos, se a manobra der certo. Dentro de onze dias, a República fará 120 anos. Já é tempo para que se torne, tal como a quiseram então, uma federação de direito e de fato.
Aécio recusa, como é da conveniência dos mineiros, a Vice—Presidência. Ele interpreta bem o sentimento de Minas que, desde o regime militar, vem dando credibilidade ao Planalto com seus vice-presidentes, e já se cansou disso. Castelo Branco buscou José Maria de Alkmin para endossar a ditadura inaugural; Costa e Silva recrutou Pedro Aleixo (menosprezado no episódio do AI-5); Aureliano serviu de avalista a Figueiredo; Collor foi atrás de Itamar e, por último, Lula teve que se valer de José Alencar para tranqüilizar os meios empresariais.
O ex-presidente previa o caos, se Lula fosse eleito. A vitória do trabalhador provavelmente tenha salvado o país do caos. Se os programas do governo não houvessem aliviado a situação dos famintos e humilhados, teria sido impossível conter a explosão do desespero.

PLEBISCITO SOBRE DROGAS


A legalização do comércio de entorpecentes volta ao debate, no mundo inteiro, diante da crescente criminalidade associada ao tráfico das drogas. Talvez sejamos obrigados, em breve, no Brasil, a perguntar à sociedade inteira, mediante votação plebiscitária, se ela aceita o livre consumo das drogas ou prefere continuar com a proibição. A guerra entre as forças do Estado e os soldados do narcotráfico, e dos grupos de criminosos entre eles, se intensifica no mundo inteiro. Milhares de pessoas morrem todos os anos, principalmente nos países pobres. E qualquer pessoa de bom senso sabe que há, por detrás do grande negócio, importantes financiadores e organizadores do sistema – os que auferem, em segurança, e longe das favelas, os lucros maiores, enquanto os pequenos matam e morrem. Além disso, as altas margens desse comércio servem para corromper policiais e outros servidores do Estado, como juízes, não só de primeira instância, como de alguns tribunais – como já ficou provado em operações da Polícia Federal.
O debate não pode ser superficial. O consumo de drogas causa imensos danos às comunidades humanas. Destrói a saúde das pessoas e exige gastos públicos consideráveis, não só no combate à produção, distribuição e consumo das drogas, como, também, na assistência médica e psicológica aos viciados. Ninguém, de bom senso, pode estimular o uso de drogas, qualquer seja o grau de sua periculosidade. Melhor seria para o mundo que não houvesse tais drogas. Há, é verdade, uma diferença entre o cigarro comum – que só causa dano ao organismo físico dos fumantes, ativos e passivos – e a cocaína e seu derivado residual, o craque – que enlouquece o consumidor e o incita a crimes tenebrosos, muitos deles cometidos no interior das famílias. Sendo assim, não é fácil defender a plena liberdade de consumo.
Pelo outro lado, há uma visão radical da liberdade, que assegura a qualquer um o direito de dispor de seu próprio corpo como quiser. O uso da droga, para esses defensores da total autonomia pessoal, deve ser permitido – desde que seus atos não venham a prejudicar outras pessoas. Nesse caso caberia ao Estado controlar o consumo, em lugares especiais, mantendo o drogado sob custódia enquanto durassem os efeitos do narcótico. Será um gasto considerável, mas, provavelmente, menor do que o exigido no combate inútil aos traficantes e consumidores. Outro efeito social importante será o saneamento das favelas. Com a droga sendo comercializada nas farmácias, mediante controle, os morros deixarão de ser entrepostos de distribuição dos narcóticos. O Estado voltará a ocupá-los, a corrupção deixará de atingir os corpos de repressão, e o que restar do comércio clandestino será mais facilmente combatido.
A exacerbação do consumo de drogas – que é historicamente um ritual místico - é hoje uma das respostas da infelicidade, da frustração, do desencanto da sociedade contemporânea. É uma forma radical de evasão, que pode conduzir à fuga absoluta, à morte. Não é uma desgraça apenas da pobreza, mas de todas as camadas sociais. Sua causa mais profunda é o sentimento de alienação que a sociedade industrial contemporânea impõe, conforme todos os estudos sobre o tema.
Alguma coisa deve ser feita, e já.

DEZ COQUEIROS


Hoje não há um só coqueiro na praça, e o nome oficial voltou a ser Córrego do Abençoado. Mas durante muitos e muitos anos o lugar se chamou Dez Coqueiros. Consta que, nos anos setenta, dos mil e oitocentos, quando o Segundo Reinado estava no auge, dez homens de uma mesma família foram mortos, no prazo de três anos. E no mesmo prazo, em um terreno vazio, do patrimônio da Igreja de Santa Luzia dos Santos Cegos, foram plantados, por mãos desconhecidas, dez coqueiros da raça macaúba, ali chamados de bocaiúva. Os coqueiros formavam um quadrado, com dois no meio. Ninguém, naquele tempo, relacionou o aparecimento dos coqueiros com a morte dos Vieirinha. O diminutivo era só do patriarca, pelo miúdo que era, mas passou a ser de todos os outros, filhos e genros.
Um dos Vieirinha, o mais novo de todos, foi salvo do extermínio, ninguém sabe como. Para uns, ele fugiu; para outros, foi levado pelo padre ou pelo comprador de gado, mas ninguém sabe ao certo. Como ninguém soube, ao certo, quem matara a família, ainda que houvesse boatos, nunca confirmados. As mulheres, de luto fechado, morreram sem matrimoniar ninguém; as viúvas, sempre de cara amarrada, as moças envelhecendo beatas e beatas morrendo.
Em 1920 apareceu na cidade rico forasteiro, comprador de terras. Além de uma fazenda, comprada em nome alheio, fez negócio com a igreja, ficando com o terreno dos Dez Coqueiros. Para a estranheza dos muito mais velhos – já se haviam passado quase 50 anos da morte dos Vieirinha – começaram a morrer os homens da família dos Alves, e ninguém se deu conta de que sempre que um deles era enterrado, o vento derrubava um dos coqueiros velhos. Antes do Natal, o padre recebeu documento de devolução, sem ônus para a Igreja, do terreno dos Dez Coqueiros e – e o forasteiro desapareceu.
Foi depois disso que o arraial – hoje cidade - voltou a chamar-se Córrego do Abençoado.