19 de fev. de 2010

AS MUITAS MARGENS DOS RIOS



Guimarães Rosa encontra uma terceira margem de um rio, para nela colocar seu personagem sem nome. O conto tem, nisso, outro de seus enigmas: o filho que narra, o pai que navega nas águas altas, a mãe e mulher, que sofre, e o rio, não têm nomes. Ninguém tem nome, nada tem nome: a estória é feita de silêncios e de mistérios. Mas a grande força é a do rio. O rio chama o homem, talvez cansado de si mesmo, talvez cansado do mistério do próprio rio, todos os dias, o mesmo; todos os dias outro em suas águas iguais, sempre novas, vindas do céu e da seiva da terra. Para fugir do mistério, o personagem de Guimarães Rosa talvez tenha querido nele viver, tentar devassá-lo de dentro para fora.

Os rios são sempre semelhantes e muito diferentes. As margens podem ser parecidas, conforme a região; em matas e brejos, em barrancas e areais, em rochas e rasos secos. Mas os rios têm alma, e sua alma, como a dos homens, é vária; muda com seus indevassáveis humores.O rio mata e o rio salva; o rio canta e chora sobre as pedras, ou quando é afunilado pelos paredões, em canais esguios, e procura libertar-se, em busca do mar distante.

Tantos são seus mistérios que suas margens se multiplicam. Não há só a terceira margem, de que trata Guimarães, em um de seus textos mais maduros e mais instigantes. O mar pode ser belo, majestoso, imenso, promessa de infinito; mas os rios, dos córregos raquíticos aos mais largos e mais densos, estão mais próximos da condição humana, são metáforas da vida. Nascem em pontos altos, de águas ralas e mansas e vão descendo as encostas, caindo nas cachoeiras, esquivando-se das serras, crescendo com as tempestades, até desaparecerem no oceano. Dele, as águas subirão, para retornar, com o vento, às serras. Em seu curso, o rio vai recolhendo seus mortos, e registrando, nas águas menores, que afluem, à direita e à esquerda de seu caminho, o som do choro e o sal das lágrimas; o riso das crianças e os sons abaritonados dos machos e acontraltados das fêmeas, nos duelos de amor.

Em um rio também sem nome, James Joyce coloca o princípio e o fim de Finnegans Wake: “river run, past Eve and Adam, from swerve of shore to bend of bay...

Sempre vivi na beira de rios, alguns modestos como os meus melhores amigos, riozinhos de águas anãs, e outros densos de história, como o Reno, o Tevere, o Vltava, vaidosos e arrogantes. Pelo leito de alguns rios, naveguei; ora com cuidados, ora com fundada confiança. Os rios de Minas conheço-os quase todos, do São Francisco, que vai juntando os povos até o mar do Nordeste, ao Doce, que, sempre soturno, cai no mar do Espírito Santo; do Urucuia voluptuoso, ao Jequitinhonha desconfiado.

De todos os rios tenho a experiência do saber que emana de suas águas. Os povos ribeirinhos são sempre mais astutos, conhecem as idiossincrasias do tempo; lêem nos ramos que descem as águas o ânimo da natureza. Mas não podem evitar as cheias: os rios são guardiães incorruptíveis dos segredos da natureza. Sobem quando menos se espera e, enraivecidos e cruéis, invadem os vales. Seus leitos convocam as águas que descem as encostas, para arrastá-las, soterrar os descuidados, atrair os mortos às suas águas ressentidas.

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