Talvez não seja politicamente correto lembrar o que ocorreu em Grotas do Embaúba. O lugar nada tinha de especial que o diferenciasse. Situado em terras intermediárias entre uma língua de mata atlântica, que avançava rumo ao oeste, como se a floresta buscasse terras mais férteis, e o sertãozão carrapichoso e marcado de dunas avermelhadas, ao norte, e o cerrado ralo ao sul, o antigo arraial ocupava vale estreito, cercado de grotas que, nas duas margens do ribeirão Embaúba, aliviavam as colinas ásperas com a vegetação fechada, de forte verde, que ninguém se arriscava a violar.
As famílias antigas, nem ricas, nem miseráveis, se davam bem. Plantavam e criavam, dois ou três comércios as serviam, não havia padres que as perturbassem, nem médicos que as ajudassem a morrer. Por isso, presume-se, viviam bastante. A paz foi perturbada com a chegada dos forasteiros. Um geólogo descobrira, nos morros, depósitos de zinco, com forte proporção de cádmio, de alto preço no mercado. A notícia atraiu pequenas e médias mineradoras. O lugar decuplicou de habitantes em menos de um ano. O comércio floresceu, as terras multiplicaram de preço, uma estrada foi aberta até a mais próxima estação de estrada de ferro, e muitos moradores antigos descobriram o valor do dinheiro e a alegria do conforto. Antes, nas eleições, o lugarejo votava unido, respeitando a vontade dos mais velhos, que se reuniam antes do pleito e decidiam que candidatos apoiar. Não havia infidelidade.
Os forasteiros haviam trazido, com suas ferramentas, a ambição do dinheiro e do poder. As velhas famílias rapidamente perderam prestígio. Aos engenheiros, capatazes e mineradores, somaram-se o médico, o padre e o pastor, que abriram os seus negócios, comprando as melhores casas do distrito. Sendo a nova maioria, encabeçaram o movimento pela emancipação de Grotas – e a obtiveram, com a brava e inútil oposição dos moradores antigos. Esses esperavam que as jazidas se esgotassem logo, para que pudessem reencontrar a paz.
Realizadas as primeiras eleições do novo município, os forasteiros fizeram a maioria absoluta da Câmara Municipal, enquanto os antigos só conseguiram eleger dois vereadores. Prefeito e vice eram nascidos na capital, cheios de arrogância e nove-horas na conversa. Os impostos pagos pelas mineradoras à antiga sede municipal eram altos, mas os forasteiros conseguiram aprovar lei que os reduziram a quase nada. Um dos filhos de Grotas, que estudara na capital, ao visitar os pais, descobriu a maracutaia: as empresas mineradoras pagavam uma parcela do que economizavam de impostos ao prefeito, ao vice e aos vereadores da maioria. Os velhos se reuniram, convocaram filhos e genros, compraram armas e munições, fizeram seus planos estratégicos. Eram minoria, mas decididos, e contavam com a surpresa. Na madrugada certa, cortaram a linha de eletricidade, fecharam o correio, prenderam preventivamente o padre, o pastor e o médico e obtiveram a adesão do cabo e dos dois praças do Destacamento da Força Pública. Exageraram em seu civismo, ao permitir que fossem enforcados, na praça, o prefeito e o vice, depois de confiscados os seus bens. Expulsaram, sob tiros de sal e chumbinho miúdo, os administradores das empresas de mineração e os vereadores da maioria.
Nomearam um governo interino, enviaram delegação ao governo do Estado e conseguiram que esse reconhecesse a situação de fato, até novas eleições. Um inquérito foi instaurado para apurar as responsabilidades na execução dos larápios, mas não levou a nada. O silêncio dos insurretos foi absoluto. O novo município encampou as minas de zinco, e criou empresa própria para explorá-las. Os engenheiros e técnicos que quiseram, continuaram trabalhando, com o compromisso de não se meterem na política.
Grotas do Embaúba não retornou à paz antiga, mas recuperou muito de sua dignidade.
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