12 de jun. de 2011

A BANDEIRA DE PESSANHA

Os que quiserem, desacreditem. Prevenido, como sou, contra as ilusões da certeza, acho que aceitarei o convite de Hermínio, e irei ao Riachinho no dia 20 de outubro, data em que, segundo seus cálculos, voltará a passar, pelo Val do Jumento, a bandeira perdida de Diogo Pessanha Moniz.

São fugazes as referências documentais sobre bandeiras que não fundaram cidades, nem voltaram. Constituídos de aventureiros menores, muitas vezes sem o consentimento das autoridades, reduzidas em seus recursos, esses grupos partiam de São Paulo sem festas de despedidas e sem cartas d’El Rei; recorriam sendas normalmente inviáveis, ladeando rios difíceis e os cruzando, com perdas humanas, quando se sentiam impelidos a isso, na preação de índios e outros quefazeres. Delas, talvez a de menos propósito tenha sido a de Diogo Pessanha. Uma carta, trazida dos arquivos do Conde de Tuy, revela a frivolidade da empresa. Quem a assina é uma cunhada do chefe da expedição, mulher de Antonio Ramalho Pessanha. Pela mensagem se sabe que Diogo juntara o que havia de pior entre as pessoas sem qualidade da vila, e se embrenhara pelos sertões do Norte, nas semanas da quaresma de 1684. Galhofeiro e blasfemo, levava, como estandarte, uma camisola vermelha, que dizia ter pertencido a um dos primeiros jesuítas do Planalto, e sobre quem pairavam suspeitas de passiva sodomia. Acompanhava-o um séquito sórdido. Como lugar-tenente, levava o judeu renegado Mertins, que se atribuía os poderes da Cabala, e de quem se dizia, à boca pequena, ter enforcado a mãe, na vila de Óbidos, antes de vir para as terras brasileiras. Há também referência a um corcunda de mãos quentes, capaz de cozinhar uma perdiz em poucos minutos, desde que a mantivesse sob o agasalho de suas palmas e dedos. A expedição, de acordo com o diário, escrito por Mertins, e deixado no arraial do Tamanduá, atravessou a Mantiqueira no princípio de maio, depois de haver buscado trilhas de índios, que não de brancos, entre Taubaté e Sorocaba. Dela há sinais de passagem em todas as Minas, nos últimos trezentos e tantos anos, porque, marcada por singular e ainda desconhecida maldição, foi condenada a vagar, mesmo depois de mortos seus integrantes, pelos sertões pejados de ouro e de pedras preciosas, de índios e de piscosas lagoas.

Hermínio, latinista, homeopata, rosacruz e maçom dissidente do rito escocês, está levantando todos os dados, e pretende escrever alentada memória sobre o assunto. Em 1791 houve notícias da bandeira de Diogo Pessanha na estrada de Ouro Branco. Um padre e seu moleque, idos das Congonhas, encontraram-na em pleno dia, com alguns de seus homens esfolando um macaco. Blasfemos, como eram, haviam amarrado o animal a uma cruz, e lhe arrancavam a pele, com facas afiadíssimas, e cortavam bifinhos que se repartiam. O corcunda, ao lado, fritava-os na concha das mãos. O macaco, já sem forças, gemia e chorava. Com aquela visão, o sacerdote enlouqueceu, mas o moleque, que ainda guardava, da África de seus pais, certas suspeitas, narrou o fato ao vigário da Capela do Pilar. O pároco lhe impôs segredo, - mas deixou constância do ocorrido em papel solto entre as páginas do Livro de Batismos.

Hermínio rastreou a bandeira por estes três séculos, e dela teve sinais no Bonfim e nos dois lados do Rio das Mortes; nas Minas da Campanha, do Sabará, do Jequitinhonha, no Desemboque e em Paracatu. Na última cidade, e na sede de fazenda adquirida recentemente por um amigo do pesquisador, foi encontrada arca de couro com objetos pertencentes a um tal Pessanha. Segundo Hermínio, que os examinou, tal como os cometas, a bandeira perdida de Diogo Pessanha volta, de 30 em 30 anos, ao mesmo caminho. No dia 20 de outubro, que vai dar em uma quinta-feira, estaremos em Val do Jumento, à espera de Diogo. Se ele não passar, paciência. Não faltará a boa cachaça das redondezas.

3 comentários:

Aquiles Lazzarotto disse...

Entendo que a blogosfera se constrói com cada um de seus nós dando destaque ao que encontra de interessante na rede, constituindo, cada um, um painel de textos de diversas origens, além dos originais dos autores de cada blog, passando para um público cada vez maior leituras que estimulem a reflexão. A grande mídia faz sua seleção sobre o que publicar. Nós, na blogosfera fazemos nossas seleções e podemos apresentar contrapontos e visões de mundo variadas.
Assim, gostaria de saber se posso publicar eventualmente em meu blog textos de sua autoria, sempre citando o autor e o blog de origem, é claro.

Mauro Santayana disse...

Com todo o prazer , Aquiles. Fico muito honrado. Um grande abraço.

Aquiles Lazzarotto disse...

Grato pela atenção e pelos seus textos que contribuem para que eu saiba cada vez mais que sei cada vez menos. Ou seja, a cada novo aprendizado ou nova compreensão, sinto que meus horizontes se alargam, deixando-me mais e mais pequenininho, mas sempre disposto a continuar, a desvelar, a me desiludir (no melhor dos sentidos).
Abraços.