(Carta Maior) - Se alguém, ao ler estas
notas, lembrar-se de Montesquieu com suas Cartas
Persas, e de Tomás Antonio Gonzaga, que nelas se inspirou, para redigir as Cartas Chilenas, estará fazendo a ilação
correta. O assunto nos interessa de perto, assim como o texto do barão de La Brède interessava aos
mineiros de Vila Rica daquele tempo. O julgamento, pelo Tribunal Supremo da
Espanha, do juiz Baltasar Garzón, é um
exemplo de nossos tempos, nos quais a subversão da lógica e da ética é a
mais pavorosa forma de terrorismo. Como no século passado, estamos assistindo
aos recados do fascismo, que se reergue, dos subterrâneos da História, para
retomar a mesma sintaxe de sempre, que faz do crime, virtude; e, da dignidade, delito desprezível.
No passado, era comum a frase
esperançosa de que ainda havia juizes em Berlim. Embora ela
viesse de uma obra de ficção, é provável que tenha sido autêntica, porque se
referia a Frederico II, cuja preocupação para com a equidade da justiça era
conhecida, conforme recomendações a seus ministros. Segundo a obra de François
Andrieux (Le meûnier de Sans-Souci) e
de Michel Dieulafoy (Le Moulin de
Sans-Souci), ambos contemporâneos do grande monarca, essa foi a resposta de
um moleiro, vizinho ao castelo famoso, quando o soberano, diante de sua recusa de vender-lhe sua propriedade, ameaçou
confiscá-la. O humilde moleiro – talvez confiado na própria conduta habitual de
Frederico II, disse-lhe que isso não seria possível, porque ainda havia juízes em Berlim. Havia juízes
em Berlim e ainda os há, aqui e ali, mas quando homens como Garzón são
submetidos a julgamento – e pelas razões alegadas pelos seus contendores – é de
se perguntar se, em alguns lugares, ainda os há. Em alguns lugares, como em Washington, em que a Suprema Corte de vez
em quando espanta os cidadãos, com suas decisões. E em outros lugares.
Baltasar Garzón surpreendeu a
sociedade espanhola, com sua obstinação
na luta contra os que lesam os direitos humanos, o crime organizado, a
corrupção no Estado, os delitos dos serviços secretos em suas relações com
grupos terroristas. Sua grande vitória, ao obter a prisão, em Londres, do
ex-ditador Pinochet e seu posterior julgamento, pela justiça chilena, fizeram dele uma personalidade mundial. É
certo que essa obstinação o transformou em magistrado incômodo. Alguns o vêem
com a síndrome do justiceiro enlouquecido,
espécie de Torquemada de hoje. Mas o pretexto que arranjaram para
conduzi-lo ao mais alto tribunal da Espanha é, no mínimo, pífio. Garzón, a
pedido das autoridades policiais, autorizou a escuta telefônica de algumas
pessoas, detidas e em liberdade, com o propósito de impedir a destruição de
provas e a continuação de remessas ilegais de dinheiro obtido do erário, ao
exterior, e sua “lavagem”, mediante os métodos já denunciados no Brasil.
Trata-se do famoso caso Gurtel, um entre
muitos outros, na Espanha de hoje, em que a presença do franquismo e da Opus dei continua firme. Um grupo de
empresários da comunicação e eventos, chefiados por Francisco Correa,
intermediava contratos de toda natureza com os governos autônomos e municípios,
chefiados pelos homens do Partido
Popular, quando este estava à frente do governo nacional, e que agora retornou
ao poder. O grupo corrompia as
autoridades, com presentes, viagens e, sendo necessário, dinheiro vivo ou depositado na velha Suíça,
em nome de políticos e seus laranjas.
O dinheiro vinha das empresas candidatas aos bons negócios com o Estado, que
“superfaturavam” os contratos.
Os advogados dos bandidos – nessa inversão moral de
nossos tempos – conseguiram processar o juiz Garzon, sob a alegação de que as
escutas haviam sido ilegais. Ocorre que um juiz, que substituiu Garzón na causa,
manteve as escutas e o próprio tribunal de Madri, de segunda instância, confirmou
a autorização das interceptações telefônicas. O fato é que o julgamento de
Garzón é de natureza política, seja ele um magistrado incorruptível, como é
visto pela opinião pública, ou um deslumbrado pela notoriedade, como dele falam
os inimigos. E é a inversão da lógica: ele está sendo processado por ladrões.
Na segunda metade dos setecentos
ainda havia juizes em Berlim, de acordo com o modesto moleiro de Potsdam. Resta
saber se ainda os há em
Madri. E em outros lugares.
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Um comentário:
Sr. Mauro, explore quando oportuno a participação do Opus nestes esquemas. Seus leitores, antecipadamente, agradecem.
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