5 de ago. de 2012

AS ARMAS



(Crônicas de Minas) -Senhor de todos os respeitos, não o amavam, mas temiam seu mistério. Ali chegara trinta anos passados, com grossos contos de réis, a mulher cabisbaixa e o fordinho que, ao entrar no povoado, exigira turma de enxadeiros para arrumar a légua-e-meia de caminho ruim.

Chegara com carta de recomendação ao major Cerqueira, filho do finado coronel do mesmo nome, e por isso portador de patente menor, já que a Guarda Nacional fora extinta, mas ainda prevaleciam as honras da família. O major Cerqueira vendeu-lhe, pelo dobro do que valia, uma data de terras de capoeira nanica e brejo duro. Isso não o esmorecera; com dinheiro tudo se ajeita, e dinheiro ele tinha.

Conversando pouco, contratava seus camaradas ao preço do mercado, mas oferecia compensações secretas: mais pêlo de carne no caldeirão, litro-e-meio de cachaça aos sábados e remédios para doencinha rasteira, como desarranjo e defluxo. No armário da varanda (camarada seu não entrava da varanda pra dentro) guardava sal-de-glauber, sena, maná, magnésia e elixir paregórico, que dosava criteriosamente.

Nos trinta anos engrossou fortuna, mas não pôde prosperar família. A mulher era de barriga miúda, comentava-se, de boca a ouvido, porque, fora das paredes, ninguém sabia do que se passava entre os dois. Nunca lhe haviam visto os dentes, e, de sua boca, à parte os cumprimentos secos, só se ouviam palavras de precisão. Aquelas que davam ordens, e aquelas que tratavam de negócios. Na cidade, mesmo, seus assuntos eram poucos: comerciava com gente de fora, que lhe vinha comprar garrotes e novilhas de raça, especialista que era em melhorar o sangue de nelores uberabenses. Dizia-se (ninguém provara) que seu segredo era o incesto entre os bichos.

Levantou-se naquela quinta-feira como de seu costume, às cinco, e foi chamar o vaqueiro, mas não o encontrou no curral. Não carecia de procurar a mulher, mortíssima havia meses já – mas foi até o quarto da cozinheira, que tampouco estava. “Ó gente, que passa aqui, que não tem ninguém?” – resmungou. Saiu um pouco. Da varanda via o povoado todo, com suas vinte e oito casas. Era verão alto, e o sol brilhava. Não viu vulto que fosse. Às seis chegariam seus camaradas, e o vaqueiro e a cozinheira (ele já desconfiava) deviam estar pelo retirinho, mais no seguro, acordando de safadezas. Esperaria.

As sete, pela primeira vez na vida, ele mesmo coou café forte, cortou uma fatia de queijo e resolveu chegar ao arraial. O arraial também estava vazio. Deu-lhe então o sério pressentimento de que o haviam achado. Voltou apressado para casa, o coração socando o peito, à espera de uma bala nas costas – mas, nada. Só havia o silêncio. Ao chegar ouviu mugidos horríveis no estábulo. Seu reprodutor de duzentos contos, estava peado e castrado. As outras reses agonizavam devagar, meio sangradas pelo pescoço. Eram eles. Entrou, e viu que não tinha uma só arma em casa. Mas não iria pedir misericórdia. Já sabia o que ocorrera: saídos da cadeia, os três se juntaram para vir atrás dele, que nunca cumprira nada do prometido – nem mesmo olhar pela mulher do Santos, que estava grávida, nem mesmo pagar a operação do pai de Durvalino. Tinham esvaziado o arraial, indo de casa em casa durante a noite – e como ninguém ali o estimava, fora fácil mandar todos para assistir, dos altos, ao seu fim. Queriam matá-lo de medo. Era o que ele faria se estivesse no lugar deles – e um deles estivesse em seu lugar. Mas estavam lidando com lacrau. De medo, não. De bala sim, ou , quem sabe, talvez. Foi para a varanda, sentou-se na cadeira alta, tirou a camisa e ofereceu o peito magro como alvo. Mas não houve tiro. Ouviu barulhos no fundo, não se moveu. Com fome, o sol a pino, levantou-se devagar, foi à cozinha, cortou um pedaço de charque, chamuscou-o no borralho, comeu. Tirou, com a cuia, água do pote e levou-a à boca: estava amarga, purgativa. Não bebeu. Ao meio dia os passarinhos sempre cantavam, e estavam mudos. Haviam posto arsênico no alpiste.

Voltou para o cadeirão da varanda e, pela primeira vez a paisagem ouvia sua gargalhada: “apareçam, se são homens. Venham, seus frouxos.” Calou-se, ao sentir a velha e companheira dor no peito. Mas não enfiou a mão no bolsinho da camisa para apanhar o comprimido. Levantou-se da cadeira, sentou-se na rede, gritou:

- Já que vocês não chegam, vou tirar uma soneca. Quem sabe arranjam coragem?

Respirou fundo, deu uma banana para a paisagem quieta, recostou-se, e agüentou, prazeroso, a dor da angina. Quando, finalmente, rastejaram até a varanda, ele ria de olhos fechados, e dois dedos, o polegar e o indicador, se juntavam, hirtos, no gesto obsceno.

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