Estamos assistindo a uma confusão perigosa no caso da Ação 470, que deveria ser
vista como qualquer outra. Há o deliberado interesse de transformar o
julgamento de alguns réus, cada um deles responsável pelo seu próprio delito –
se delito houve – no julgamento de um partido, de um governo e de um homem
público. Não é a primeira vez que isso ocorre em nosso país. O caso mais
clamoroso foi o de Vargas em 1954 – e a analogia procede, apesar da reação de
muitos, que não viveram aqueles dias dramáticos, como este colunista viveu.
Ainda que as versões sobre o atentado contra Lacerda capenguem no charco da
dúvida, a orquestração dos meios de comunicação conservadores, alimentada por
recursos forâneos – como documentos posteriores demonstraram – se concentrou em
culpar o presidente Vargas.
Quando recordamos os fatos – que se repetiram em 1964, contra Jango – e vamos
um pouco além das aparências, comprova-se que não era a cabeça de Vargas que os
conspiradores estrangeiros e seus sequazes nacionais queriam. Eles queriam,
como antes e depois, cortar as pernas do Brasil. Em 1954, era-lhes crucial
impedir a concretização do projeto nacional do político missioneiro – que um de
seus contemporâneos, conforme registra o mais recente biógrafo de Vargas, Lira
Neto, considerava o mais mineiro dos gaúchos. Vargas, que sempre pensou com
argúcia, e teve a razão nacional como o próprio sentido de viver, só encontrou
uma forma de vencer os adversários, a de denunciar, com o suicídio, o complô
contra o Brasil.
Os golpistas, que se instalaram no Catete com a figura minúscula de Café Filho,
continuaram insistindo, mas foram outra vez derrotados em 11 de novembro de
1955. Hábil articulação entre Jango, Oswaldo Aranha e Tancredo, ainda nas ruas
de São Borja, depois do sepultamento de Vargas, levara ao lançamento imediato
da candidatura de Juscelino, preenchendo assim o vácuo de expectativa de poder
que os conspiradores pró-ianques pretendiam ocupar. Juscelino não era Vargas, e
mesmo que tivesse a mesma alma, não era assistido pelas mesmas circunstâncias e
teve, como todos sabemos, que negociar. E deu outro passo efetivo na construção
nacional do Brasil.
Os anos sessenta foram desastrosos para toda a América Latina. Em nosso caso,
além do cerco norte-americano ao continente, agravado pelo espantalho da
Revolução Cubana (que não seria ameaça alguma, se os ianques não houvessem sido
tão açodados), tivemos um presidente paranóico, com ímpetos bonapartistas, mas
sem a espada nem a inteligência de Napoleão, Jânio Quadros. Hoje está claro que
seu gesto de 25 de agosto de 1961, por mais pensado tenha sido, não passou de
delírio psicótico. A paranóia (razão lateral, segundo a etimologia), de acordo
com os grandes psiquiatras, é a lucidez apodrecida.
Admitamos que Jango não teve o pulso que a ocasião reclamava. Ele poderia ter
governado com o estado de sítio, como fizera Bernardes. Jango, no entanto, não
contava – como contava o presidente de então – com a aquiescência de maioria
parlamentar, nem com a feroz vigilância de seu conterrâneo, o Procurador
Criminal da República, que se tornaria, depois, o exemplo do grande advogado e
defensor dos direitos do fraco, o jurista Heráclito Sobral Pinto. Jango era um
homem bom, acossado à direita pelos golpistas de sempre, e à esquerda pelo
radicalismo infantil de alguns, estimulado pelos agentes provocadores. Tal como
Vargas, ele temia que uma guerra civil levasse à intervenção militar
estrangeira e ao esquartejamento do país.
Vozes sensatas do Brasil, começam a levantar-se contra a nova orquestração da
direita, e na advertência necessária aos ministros do STF. Com todo o respeito
à independência e ao saber dos membros do mais alto tribunal da República, é
preciso que o braço da justiça não vá alem do perímetro de suas atribuições.
É um risco terrível admitir a velha doutrina (que pode ser encontrada já em
Dante em seu ensaio sobre a monarquia) do domínio do fato. É claro que, ao
admitir-se que José Dirceu tinha o domínio do fato, como chefe da Casa Civil, o
próximo passo é encontrar quem, sobre ele, exercia domínio maior. Mas, nesse
caso, e com o apelo surrado ao data venia, teremos que chamar o povo ao banco
dos réus: ao eleger Lula por duas vezes, os brasileiros assumiram o domínio do
fato.
Os meios de comunicação sofrem dois desvios à sua missão histórica de informar
e formar opinião. Uma delas é a de seus acionistas, sobretudo depois que os
jornais se tornaram empresas modernas e competitivas, e outra a dos próprios
jornalistas. A profissão tem o seu charme, e muitos de nossos colegas se deixam
seduzir pelo convívio com os poderosos e, naturalmente, pelos seus
interesses.
O poder executivo, o parlamento e o poder judiciário estão sujeitos aos erros,
à vaidade de seus titulares, aos preconceitos de classe e, em alguns casos,
raros, mas inevitáveis, ao insistente, embora dissimulado, racismo residual da
sociedade brasileira.
Lula, ao impor-se à vida política nacional, despertou a reação de classe dos
abastados e o preconceito intelectual de alguns acadêmicos sôfregos em busca do
poder. Ele cometeu erros, mas muito menos graves e danosos ao país do que os de
seu antecessor. Os saldos de seu governo estão à vista de todos, com a
diminuição da desigualdade secular, a presença brasileira no mundo e o retorno
do sentimento de auto-estima do brasileiro, registrado nos governos de Vargas e
de Juscelino.
É isso que ficará na História. O resto não passará de uma nota de pé de página,
se merecer tanto.
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Quem vai escrever um livro contando para as gerações futuras o que está sendo o caso da Ação 147?
ResponderExcluirParabéns, jornalista! por mais este brilhante e corajoso artigo!
ResponderExcluirBrilhante esse artigo, Mauro!
ResponderExcluirEstou reproduzindo na minha rede porque considero fundamental compartilhar essa visão para contrapor a avalanche de distorções - seria melhor dizer de posições políticas muito claras do conservadorismo - que se quer implantar como dominante no país, via, principalmente, a mídia.
Abraço agradecido.
Renata
Obrigado Isabel, Renata. E um abraço !
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