(JB) - Um leitor, em comentário
sobre a morte de Fernando Lyra, identificou-o como “usineiro”. Nada o teria
feito rir melhor. Há Lyras e Lyras no nordeste. Fernando procedia de família de
pequenos agricultores de Lagoa do Gato, um dos lugares mais pobres do Agreste.
Seu pai, ao deixar a região, fez-se modesto empresário. Com o tempo seus
negócios cresceram e permitiram a Fernando formar-se em direito em Caruaru.
Essa origem de classe, associada a outras virtudes suas, fizeram-me admirador e
amigo de Lyra nos últimos trinta anos – títulos que compartilho com centenas de
outras pessoas.
A notícia de sua morte
chegou-me em hora pessoal já amarga: acabara de sepultar a mãe de Wania, minha
mulher, em Belo Horizonte, o que me tocara fundamente, por ter sido, contra o
lugar comum, uma amiga muito querida há 54 anos.
Em seguida à
notícia, comentamos, o médico Aloizio
Costa e Silva e eu, a esfuziante personalidade
de Fernando Lyra, como a ele se referiu, em minha presença, o professor
Affonso Arinos de Mello Franco. Todos admiravam a capacidade política do
parlamentar pernambucano, fosse como analista dos movimentos históricos, que o
faziam antecipar os fatos, fosse como o articulador que conseguia submeter as
circunstâncias aos seus projetos – todos eles em favor da nação e de nosso
povo. Essas eram as usinas que Lyra sabia administrar.
É bom repetir que os
pernambucanos, os gaúchos e os mineiros – sem desmerecer o patriotismo dos
outros brasileiros – tiveram o privilégio histórico de comprometer-se mais com
a construção da nacionalidade. Em Guararapes nasceu a própria idéia de Nação, e
nação mestiça, com a aliança de índios, negros e brancos, que expulsou os
holandeses; coube ao Rio Grande riscar, com sangue, a fronteira meridional, em
300 anos de refregas com os castelhanos; em Minas, ferida em suas entranhas
para a extração do ouro e gemas, nasceu a consciência do Estado para garantir a
soberania nacional. Não é por acaso que essas três grandes províncias tenham
sido aliadas nos momentos mais fortes de nossa história ainda curta.
Fernando via essa
aliança necessária, com seu instinto de animal político, sem as construções
demoradas do pensamento acadêmico. Ele quase a sentia na pele. Talvez tenha
sido essa consciência poderosa que o levou a Belo Horizonte, no momento mesmo
da posse de Tancredo, como governador de Minas, a fim de instá-lo a disputar a
presidência da República. Fernando, no livro que escreveu sobre esses fatos, e
que tive a alegria de prefaciar, disse acreditar que Tancredo não queria a
chefia do Estado.
Nisso, ele se
equivocava: Tancredo chegara ao Palácio da Liberdade convencido de seu dever de
dar um fim à Ditadura e presidir à reconstrução do Estado Republicano, mediante
a aglutinação do centro político. A leitura de seu discurso de posse, a partir
da frase inicial – O primeiro compromisso de Minas é com a liberdade – não deixa
dúvida. Tratava-se de claro manifesto de ação política.
Isso não diminui, em
nada, os méritos de Lyra, que se empenhou, dia e noite, na luta pela vitória de
Tancredo e na difícil missão que o mineiro lhe impusera, a de Ministro da
Justiça da transição. Tancredo – que ocupara o mesmo cargo nas horas graves de
1954 – sabia que a esse Ministério, desde o Império, cabiam as tarefas mais
duras da condução da política interna e da articulação com o Parlamento, hoje
deslocadas para o gabinete presidencial. Lyra assim entendeu a missão e a
cumpriu, com autoridade, diligência e sem jactância.
Ele soube assessorar-se
de acadêmicos de sua confiança, como os
professores José Paulo Cavalcanti Filho, Christóvam Buarque, Joaquim Falcão,
Marcelo Cerqueira e Sigmaringa Seixas, dando ao Ministério talvez o mais
importante suporte intelectual de sua história. Foi essa equipe que, sob a
chefia do Ministro, cumpriu a corajosa decisão de Sarney, a de se desfazer da
legislação autoritária do regime militar.
Recordo-me, pessoalmente,
de um fato significativo. No minuto seguinte ao da posse no Ministério,
Fernando mandou que os guardas armados das entradas do edifício se recolhessem
às suas repartições. O Ministério se abria ao povo.
Ao cuidar da organização
e administração da Comissão Arinos, como um de seus membros, ajudei Fernando
nessa tarefa de que Tancredo, pessoalmente, nos encarregara. Foi assim que, a
pedido do presidente eleito, convidamos o professor Arinos a chefiar o grupo.
Foi quando o grande jurista se referiu “à esfuziante juventude” de Lyra, ao
mesmo tempo em que manifestou o seu respeito à sabedoria de Tancredo em
nomeá-lo para a pasta da Justiça.
Como amigo, sofro a
perda de Fernando com quem conversava quase todas as semanas, e sempre sobre o
Brasil. Como cidadão, lamento a sua falta nesses próximos e atribulados meses
do processo sucessório que já se abriu. Ele saberia construir a aliança
necessária entre as lideranças regionais, em favor da democracia brasileira.
Este texto foi publicado também nos seguintes sites:
http://luishipolito.dihitt.com.br/n/politica/2013/02/15/conversa-afiada-santayana-e-as-usinas-de-lyra
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