Esperou que todos saíssem, naquela manhã de
domingo, e trancou por dentro a biblioteca. Bem por detrás de seu amado
Quixote, encadernado em belo couro de ovelha,
estavam a cola e a tesoura, ali deixados cinco ou seis anos antes. Mais
à esquerda, entre Eça e Emerson,
deslocada da fileira de clássicos mais antigos, a Odisséia, em lombada
vermelha, sobressaia-se na estante. Dentro dela, a foto de um menino do
princípio do século, de calças justas até o joelho, meias altas, botinas de
pelica. Nas mãos do menino, o pássaro de papel.
Era também de um domingo a
imagem. Haviam matado, um pouco
antes, o Arquiduque da Áustria, em Sarajevo. O pai e o avô, sentados sobre
cadeiras de vime branco, tomavam absinto e comentavam as incertezas do século.
Eram, o avô e o pai, bons amigos, como costumavam ser, naquele tempo, sogro e
genro. De dentro da casa vinha o som do
piano. Quem o tocaria, naquela manhã tão antiga? A mãe ou a tia? Eram tão
parecidas, por serem gêmeas, com seus cabelos longos, que ele só as distinguia
pelo hálito. O beijo da tia cheirava a alcaçuz; o da mãe trazia o aroma de água
fresca.
De repente ele se viu, naquele ano
de guerra, no meio da varanda, o pássaro
de papel entre as mãos. O avô e o pai se aproximaram para ajudá-lo. Disputavam,
lembrava-se bem, a alegria de lhe ensinar como armá-lo, prendendo-lhe as asas e
lhe torcendo a cauda. Segurou o brinquedo com as duas mãos, finas e magras,
para que o pai o fotografasse, com a luz da manhã favorecendo o foco, e o libertou para o primeiro vôo. O avô lhe
disse “muito bem”, e o pai afagou-lhe a cabeça. Ambos voltaram, em seguida, ao
absinto e aos perigos do tempo.
Buscou na gaveta, o resto do
material. Com a grossa lupa de entomólogo amador, com a qual satisfazia,
rapazola, a curiosidade sobre o sexo dos
gafanhotos e louva-deuses, examinou os detalhes do brinquedo, que a esmaecida
foto deixava perceber. Com o lápis riscou na cartolina as linhas básicas. Acendeu a forte luz sobre
a escrivaninha e começou a trabalhar.
Se o pai e o avô estivessem ali, a
seu lado, saberia como fazer bem as coisas. Eles, na certa, conheciam a
anatomia daquela ave, com as asas bem riscadas, o dorso verde, o peito amarelo.
O avô viria apontar, com o indicador de unha polida, onde colocar os olhos do
pássaro, e o pai dobraria a cartolina para nela recortar a ponta das penas. E
quando o pássaro estivesse apto para o vôo,
o soltaria. Içar-se-ia então
entre as velhas árvores, até flutuar ao longo do alto muro. Depois cairia
extenuado, as asas abertas, sobre o chão salpicado de margaridas miúdas,
avoengas daquelas que cobriam o mesmo e pequeno prado de seu tempo de
menino. Por mais viajasse pelo mundo,
nunca deixou de viver na mesma casa – e, depois da morte dos pais, no mesmo
quarto em que nascera.
De onde teriam trazido o brinquedo?
Talvez da Europa. De lá regressara, um pouco antes, o avô. Era possível que
fosse passageiro de uma daquelas grandes arcas, abertas com gritos de espanto
pelas mulheres de casa, com peças de seda, cambraias finas da Holanda, linhos
de Dublin, garrafas de bourgogne,
absinto e armanhaque. O avô falava nos novos automóveis, citava o nome de
Bleriot, confessava-se espantado com o progresso de Paris.
Deixou um pouco o papel, a tesoura, o
vidro de cola e o arame, examinou a corda do relógio. Não se enferrujara,
quando, um dia, o despertador se
cansara, o coração metálico obstruído pelo pó e pelo óxido dos anos. Abriu-o, e
dele retirou a corda: ela bem serviria para transferir às asas do pássaro a
força de seus dedos.
Agora sabia que seu brevê viera do
brinquedo de papel. O pequeno aeroplano, comprado de segunda mão em Montevidéu,
fora pintado com as mesmas cores: verde, amarelo, negro. Mais tarde, quando os
negócios cresceram – e cresceram à sua revelia – possuíra o
mais veloz dos “beechcrafts” do país, as asas chatas, a
aerodinâmica ajustada a seu prazer de cruzar sobre os altos montes, como atento
e responsável gavião.
O telefone tocou, lentamente se
aproximou do aparelho, retirou-o do gancho, não respondeu. Era preciso
isolar-se, aproveitar o dia sem filhos, sem noras e sem netos, recuperar o
pássaro. Não saberia dizer como o perdera; se ratos o haviam roído, se a
umidade desfizera suas asas coloridas, se ele fugira em busca de azuis mais
fortes.
No fim da tarde concluiu a tarefa,
era verão, o sol brilhava firme. Abriu a janela, a luz de fora banhou os
retratos antigos, simetricamente dispostos nos lambris laterais. Ele estava
ali, em suas roupas vistosas de aviador, ao lado das hélices de todos os
aparelhos que o dinheiro lhe havia permitido.
Experimentou a cola: o pássaro estava
sólido, torceu-lhe a cauda, como lhe haviam ensinado o pai, o avô. Chegou à
janela, soltou-o, e o viu ganhar altura, disputar com a brisa do domingo o
espaço, e desaparecer, bem longe, além das copas das árvores mais altas.
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