Até que ficasse provada a
minha condição de homem de miúdos negócios, e assim se explicasse a Luger 7.65,
com seus dois pentes carregados, pude aprender muito da vida com Conselhinho e
seus companheiros. Como eu podia saber que andavam catando assassinos entre os
romeiros? Soube depois que era o medo do prefeito. Boas não fizera em outra
cidade da região: desencaminhara e deixara a chorar no toco a filha de
fazendeiro forte. Resultado: suicídio de um lado e o pavor do outro.
Na verdade eu tinha mesmo
jeito suspeitoso. Uma faringite baixava o tom de voz, fazendo-a mole e
vasqueira: eu só falava o necessário. E até mesmo o sestro que eu tinha, e
tenho, de esfregar a papila do polegar na segunda falange do indicador da mão
direita me fez azar: o delegado achou que o calo era de acionar gatilho. Para
encurtar a conversa, meteram-me na cadeia pública.
Os três que lá estavam não
eram suspeitos. Ao contrário, gente de crimes bem provados, que preferia curtir
ali mesmo suas penas, bem longe das grandes penitenciárias, e se ajeitava para
isso. Conselhinho, de rosto magro,
barbinha branca, olhos cinzentos, merecia o apelido. Logo que entrei, levado
pelo soldado Hugo (que depois ficou meu amigo) pôs a mão sobre meu ombro, e
começou: “Vou te dar um conselhinho ...”
Conselhinho matara muita gente,
e só foi preso anos depois do primeiro crime. O açougueiro comprara-lhe uma
vaca para abate, como era costume. Antes de chegar ao matadouro, o animal caiu
morto. Conselhinho se negou a
indenizar. “Uai, e eu com isso? Quando vendi, estava com saúde. Eu lá tenho
culpa de ela ter adoecido no caminhão?” Conversa de cá, conversa de lá, o açougueiro,
que era forte e sangüíneo, quis buscar o seu no bolso de Conselhinho. A
lapiana, lambedeira de palmo e meio, apareceu na mão do magrelo como um raio,
de tão de repente. Depois de condenado a trinta anos, Conselhinho passou a contar as outras mortes.
- Eu não matava por necessidade. Via um
sujeito, não gostava do andado, dava um jeito nele. Nunca me pegaram porque
quem é que ia pensar neste seu criado? Sempre dando um conselhinho, sempre
ajudando os outros? Pois é, quando tive precisão mesmo de matar, aí me pegaram.
A gente, na vida, não pode ter precisão.
A mulher levava-lhe,
todos os dias, a “melhora” da bóia, que ele repartia com todos. Variava sempre:
guisado de abobrinha, cambuquira com carne de porco, cascudos fritos,
dobradinha temperada com manjericão e urucum. O arroz sem muito gosto com feijão
mulatinho, fornecido à cadeia pela mulher do sargento, ficava palatável com
a “mistura”.
Quando reclamei da
situação, dizendo que alguém devia estar roubando do governo, pra fornecer
comida tão ruim (e assim reforçar a gratidão ao companheiro), recebi logo um
“conselhinho”:
- Fica quieto. A velha
não está trazendo o molho? Depois, quanto é que ganha o sargento? O filho dele
é paralítico e meio doido.
Entendia muitos assuntos.
Para bambeira de coração, veneno de três abelhões:
- De mamangaba da legitima,
a que dá certo. Bom mesmo é fazer elas ferroar a veia do pescoço, duas do lado
esquerdo e uma do lado direito. Quando desincha, o coração fica esperto.
Ensinava também como
homem deve tomar banho para segurar mulher: com água de chuva bem quente,
depois de fervida em capim-de-cheiro.
Serafim o mais velho dos
outros dois, matara a mulher a pauladas. Nunca disse por que a matara. Mas,
pelo jeito ele preferira alegar motivo fútil e comer cadeia grossa, a ficar com
a honra ultrajada. Tinha duas filhas que o visitavam no domingo, e traziam
sempre um queijo fresco. O outro, o Pereira, era ladrão de cavalos. Quando
perguntei por seu crime, respondeu, orgulhoso, “abigeato”.
Dormíamos pouco. Durante o
tempo de sono de Conselhinho, que,
muito picado, vigiávamos. Ele se levantava, contava os barrotes do janelão,
conferia os da porta, perguntava muito surpreso a quem estivesse de guarda:
- Uai, acordado?
Como se não tivesse sido
dele mesmo o aviso: muito cuidado com
quem dorme sem sossego.
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