Delta
e estuário de cinco córregos, o lago amalgamava as águas, trançando suas cores,
porque, nelas a alma da montanha vertia óxidos vermelhos, pardos e negros.
Depois de assim reunidas, sangravam-se
as águas em riacho rápido, que batia nas pedras da garganta, no ruído aberto e
estalado de tapas na face das rochas.
Sobre
o lago, na canoa coberta de sapê, vivia o profeta, ali chamado “Sô Santo";
O símbolo de sua fé era a cruz mutilada; perdido o braço direito do madeiro de
bálsamo, ficara apenas o esquerdo, do
qual, às vezes, pendia o trapo branco.
Vista
assim de longe, a cruz parecia mastro de embarcação, mandando mensagem de
trégua e de paz aos da margem. E a mensagem era de paz e de trégua.
Nas
encostas vertentes moravam plantadores de salsaparrilha e açafrão. Desde tempos
muito passados viviam disso. Bem mais embaixo, quando, engordado, o riacho se
tornava rio, havia a pequena fábrica, que secava e moía as raízes e os estigmas, para serem vendidos em
latinhas decoradas com alegoria de Natureza: bela mulher, de cujos seios
nasciam açaflores.
Todos
os domingos desciam, vestidos com suas roupas claras, para ouvir “Sô
Santo", os da encosta e, vindos de baixo, acompanhando as precárias
trilhas, subiam, às vezes montados em burricos brancos, os trabalhadores da
fábrica.
O
profeta amarrava a canoa em esteio de pau-ferro, porque era de seu critério não
pisar terra firme. Acocorava-se na proa, o rosto meio encoberto pela sombra, e
lhes falava sobre as coisas do mundo.
“Ninguém
pode fazer um só risco nas águas, e nenhum homem até hoje foi capaz de abrir o
minuto ao meio. Só Deus pode separar as águas com um gesto, e só Deus pode
separar o minuto em seus segundos, como a gente retira as favas de uma vagem.
Só Deus pode levantar em um segundo a decisão de erguer pirâmides, quando Ele
habita, nesse segundo, o coração de um faraó.”
Na
beira do lago, sentados sobre o brando toco de samambaiaçus, os fiéis ouviam:
“Nas
brenhas desta montanha o Senhor cavalga marimbondos, e vocês não vêem, porque
sobre os seus olhos desce a névoa da soberba. Quem disse a vocês, para que
vocês acreditassem, que só o homem comunga com Deus o seu Mistério? Quem disse
a vocês que Deus não fala a seus domínios no uivo de lobo perdido de sua
alcatéia? Quem disse a vocês que Deus não se encontra, às vezes, habitando a
libélula agonizante nos palpos de uma aranha? Deus é assim: Ele é ao mesmo
tempo, a libélula e a aranha."
Houve
tarde em que, em congresso terrível, se reuniram nuvens muito negras, e a
tempestade acabou por agachar-se sobre aqueles cantos. Quando o tempo era
escuro, quase lôbrego na viscosidade do vento, o fogo de Santelmo brilhava no
extremo vertical da cruz de três pontas. A mão do profeta, com um gesto, segurou
os homens, as mulheres e seus meninos em seus lugares: aquela era uma das
presenças de Deus, atentassem nela. E lhes disse:
“Foi
assim um dia, quando, sobre seus apóstolos, Jesus fez descer a labareda. E as
labaredas sempre se parecem a uma língua. A uma língua de fogo. A língua é o
verbo, o verbo é Ele, e Ele só habita entre nós quando fala, e naquilo que
fala."
O
profeta coçava as têmporas:
“Somos
aquilo que falamos. Mesmo quando aquilo que falamos não somos. Porque não
somos apenas em nossa verdade. Somos, e muito, em nossa mentira. É aquilo que vocês
podem ver: a sombra é o esconderijo da luz. Quando a verdade se esconde, a
mentira aparece, mas, atrás dela, como a luz que faz a sombra, está a certeza
das coisas."
Um comentário:
Lindíssimo!! Parabéns!!
Sou uma grande admiradora de seus textos e de sua história.
Obrigada por partilhar conosco.
Abraços,
Marcela
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