A porta ainda existe e
isso me foi confidenciado por dois velhos galegos. Estávamos em aldeia ao Norte
de Pontevedra, os três últimos em festa de acaso. Bebêramos, queimada à moda
celta, a escaldante aguardente de Orujo, ouvíramos gaitas quase escocesas,
porque galegas, alguém recitara Gil Vicente e Rosália de Castro. Como é
saudável, e era tempo de ditaduras, falamos mal de três governos (o da Espanha,
o de Portugal e um terceiro, de interesse geral da raça).Quando todos se foram,
Xosé pôs o pote com o caldo sobre as brasas, reativou o fogo e, anfitrião,
serviu-nos estórias.
Das muitas, guardei a da
porta, confirmada inteiramente por Manolo, seu primo. A aldeia está na beira de
um dos caminhos de Santiago – exatamente o que levava gentes de Braga e dos
castros minhotos ao santuário do Apóstolo – e era estação de descanso. Um pouco
antes, aproveitando colina enganadora, o diabo abriu desvio, pavimentado a
granito rosa, elevou boa muralha e decorou a Porta com belo anjos góticos. Pela
estrada, espalhou agentes. Eles se misturavam aos peregrinos e falavam da bela
cidade habitada não só de anjos mas também de anjas, onde chovia vinho velho,
que descia pelos beirais e era despejado, da boca das gárgulas à garganta
ansiosa de bailarinas moiras. Mas também, quando lhes convinha, desprezavam o
apelo da luxúria, e tocavam no nervo da soberba: falavam de uma igreja nova, à
qual só tinham acesso os de nenhum pecado, carrancudos santos, gente de
autoflagelo diário. A tais santarrões, os propagandistas prometiam o êxtase
arrancado a açoite, pústulas a beijar, refrigérios de fel. “Arranjavam mais
fregueses entre os beatos do que entre os bons pecadores” – explicava Xosé – “e
desconfio que ainda hoje seja assim”. Todos os que eram seduzidos mudavam a cor
da face. Havia frades que, bem prevenidos, os identificavam e procuravam
demovê-los; mas aqueles que haviam sido tocados pelos encantos prometidos,
resistiam. A um monge irlandês, que viera de Aramagh, crucificaram-no de
maneira cruel. Como não houvesse madeiro, riscaram a cruz em um menir
celtíbero, e o amarraram à pedra com avios de couro. Ali o encontraram, no ano
seguinte, a calva da tonsura servindo de ninho a passarinhos pelados, os ossos
quase incrustados na rocha. Foi vitima dos beatos que não aceitaram a sua
advertência de que é preciso desconfiar dos intolerantes.
“Ainda hoje” – confirmou Manolo – “se a
gente olhar bem, e o menir está de pé, vê a sombra em forma de cruz, uma
espécie de sudário de pedra. Dizem que, em julho, quem passa por ali ouve
imprecações em latim: é o bom monge prevenindo contra a ilusão dos místicos”.
A alguns o diabo
atraía com o som de flauta doce. Quem ouvia seus sons, assegurava que a tocavam
lábios de mulheres virgens e ansiosas. Por isso, conta a tradição, muitos
peregrinos selavam seus ouvidos com cera e breu, para não ouvir os acordes
excitantes. Outros mandavam amarrar suas pernas à montaria, porque os cavalos
eram imunes ao apelo das flautas. Quando chegavam à Porta, as notas ficavam
mais intimas, eram pouco mais do que sussurros. A lenda é cheia de exemplos
edificantes de resistência. Houve – e disso há um romance peninsular – o caso
de um cavaleiro que se castrou no caminho de Santiago, não por santidade, mas
para não trair o amor de sua dama. A melodia não desviava os eunucos da rota.
E havia outros recursos
do diabo, como o da moeda de ouro. Era uma bela peça que duas mãos não cingiam.
Aparecia à beira do caminho e, quando tocada, rolava pelas trilhas de cabras
monteses. Os homens corriam detrás do ouro. No fim havia o buraco, em cujo
fundo a moeda brilhava. Os homens desciam o poço e iam dar na grande
caixa-forte, de onde nunca mais saíam.
E o que havia detrás da
Porta? Xosé e Manolo dizem que ninguém soube ao certo. Houve alguns que
disseram ter regressado, mas traziam relatos não confiáveis. E não havia uma só
Porta, mas muitas portas. Há lendas bretãs que falam de atalhos para Santiago,
que iam dar no inferno. Topônimos alpinos sugerem outros alçapões do diabo, na
beira do caminho que saia de Augsburg.
“O caminho de Santiago” –
resumiu Xosé – “são todos os caminhos do mundo, e a porta do inferno está em
cada passo. Eu penso assim. Por isso estou de acordo com Manolo. Acho também
que os pecadores que nela entram costumam dela sair. Os que não saem nunca são
os que se sentem santos. O inferno foi feito para os que não perdoam”.
Maravilha! Sou grato.
ResponderExcluirObrigado a vc também, Aldo, e um abraço !
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