O
que vou contar ocorreu entre o dia 27 de março e 26 de junho de 1928. Durou 13
semanas exatas, ou 91 dias, de acordo com a memória de Demétrio Alexandrino
Queirós, mestre em capação variada (de frango a elefante) e maçom renegado,
inscrito no Livro Negro por desvios singulares e bem humanos.
Não
fosse o povo de Cauaçu reles e egoísta, gente ordinária e pedante, devotada
aos pecados sem prazer - visto que são
perdoados os pecados que alegram os sentidos e podem ser divididos em sua
prática, como os de cama e mesa; e nefandos os do êxtase solitário, como os da
avareza, da soberba e do onanismo - não guardaria na memória a narração de
Demétrio, uma das estórias exemplares do
sertão alto.
Convém
gastar mais um pouco de tempo com a geografia física e moral de Cauaçu, para o
bom entendimento do castigo. Ilha de terras roxas e úmidas, tão molhadas que
os raríssimos calhaus chegavam a suar em pleno verão, o município era também o
único ponto, em toda a comprida chapada, de chuva regular. Chuva fina, como se
São Pedro tivesse instalado um chuveiro maneiro em cima daquele pedaço. Com
água de cima e água de baixo, nascia ali o Cauaçu que, ao contrário de todos os
rios, não crescia: descendo rumo ao Carinhanha entrava em terras sequíssimas e
esponjosas, e acabava por desaparecer, reduzido a mero rego de palmo e meio, no
Açude Velho, valhacouto dos restolhos humanos de toda aquela vasta e outrora
esquecida zona.
Cauaçu
era cidade dos paióis sempre cheios, de porcos de 15 arrobas, arroz de soca, de três cortes e espigada
cheia, e gente que chegava aos 90, cavalgando em pêlo e sem dor nas cadeiras.
Mas – e isso era o que mais espantava os raros visitantes – não havia, no mundo
inteiro, canalhas tão bem acabados. Primeiro, eram de especial avareza. Desde
tempos muito velhos, juntavam ali suas moedas de ouro. Fazia-as mestre Cirilo,
filho e neto de outros Cirilos, e punha em cada uma delas a efígie do cliente,
cercado de seu nome e, no anverso, as armas de Cauaçu: pé-de-meia cheio e a
frase antiga: "Vintém poupado, vintém ganho.” Tais moedas não circulavam:
estava convencionado, e havia muito, que era a maior desonra desfazer-se de uma
só delas. Cirilo não só as marcava, bem como as numerava e delas mantinha
registro.
O
arraial de Açude Velho, depósito da ralé, fora fundado por Negra Jovina, amásia
do beato Mané Consola, morto por uma patrulha da Força Pública, em episódio que
não cabe aqui, e fica para ser contado depois. Jovina juntou ali cegos, leprosos, sifilíticas,
aleijadas, abobados. Deus sabe como conseguia mantê-los, cozinhando raízes do
mato, fazendo sopa de ervas do brejo e, segundo injuriosa gozação do pessoal de
Cauaçu, assando pererecas e gafanhotos.
No
início de março de 36 passou pela estrada, ao lado do Açude, um circo mambembe,
e houve o acidente. Uma das moças, grávida de meses, caiu do cavalo, abortou. Teve hemorragia brutal, ia morrer, e
a salvou Jovina com benzedura, sal vermelho e
chá de osso de capivara. O dono do circo ficou conhecendo a história do
arraial desprezado. Houve então o convite: aparecessem na Quinta-feira, em
Cauaçu – a primeira função do circo seria apenas para eles. No sábado seguinte, o espetáculo
começaria oficialmente.
É
fácil saber como reagiu aquela gente ordinária de Cauaçu, desviada dos
mandamentos de Cristo e entregue à volúpia do ouro, quando soube do descabido
privilégio. Encomendaram a Demétrio a capação do elefante, que dormia ao lado
do circo, descuidado. Deram-lhe dose brutal de clorofórmio, e o bicho arriou.
Demétrio fez o serviço, suturou o corte e passou creolina. Depois mandaram o
cabo e os quatro soldados do Destacamento esperar a corja do Açude na entrada
da cidade. Aos da frente, deram instrumentos musicais: cornetas, flautins, tambores,
pandeiros e taróis. Sob os gritos dos soldados, e a mira dos três mosquetões 1914, da dotação
do Destacamento, entraram na cidade
tocando um dobrado imaginário e foram depois escorraçados a tiros de sal grosso.
Não
se sabe se a idéia foi de Jovina, das pessoas do circo ou dos próprios bichos -
quem sabe? -, Cauaçu foi arrasada naquela noite. Com a ajuda dos animais, o
elefante, meio trôpego pelo ferimento, mas decidido, e a zebra, à frente, os
miseráveis do Açude tomaram a cidade,
prenderam os cabeças e obrigaram os outros a servi-los, entre os quais os
bravos militares, vencidos pelo medo.
Uns contam que fizeram mal às donzelas e que Demétrio foi forçado a empregar seus talentos de castração “in anima nobile”, o que ele desmentiu. Tenho
depoimentos seguros de que não houve tais abusos. Aquela gente quis viver suas treze semanas,
sem fome e com a dignidade do poder. Depois ajustaram o pacto, dividiram entre
si as moedas de ouro encontradas e se dispersaram no mundo. Um deles, leproso, virou
fazendeiro grosso no Urucuia.
Desertado de seus ex-miseráveis, o Arraial do
Açude Velho desapareceu do mapa. A gente de Cauaçu, que mudou de nome, continua
ordinária até hoje.
4 comentários:
Sr. Santayana,
Magnífico!
Algum fato hodierno o inspirou?
Quando virá o livro reunindo as Estórias de Domingo?
Pelo prazer da leitura, muito obrigado.
Leninson
Caro Mauro,
Tua descrição literária do povo de Cauaçu me reavivou o espírito como uma bela homenagem ao estilo da prosa do inesquecível Guimarães Rosa.
Um abraço,
Tiago
li.
e gostei.
muito.
emerson57
Obrigado, e um abraço a todos.O livro com as Crônicas de Minas (há outras estórias nessa seção) está em preparo e vai sair com o nome de Contos Geraes.
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