30 de abr. de 2013

HORA DE REAGIR



         
 (JB)-Em sua cruzada contra o totalitarismo, Arthur Koestler disse que é possível explicar o racismo e identificar a origem da brutalidade dos torturadores e dos genocidas. Mas é necessário combatê-los, isola-los, impedir que nos agridam e  matem. Em alguns casos, podemos até mesmo curá-los. Mas isso não significa que devamos perdoá-los.
       A aceitação das idéias alheias, que é o sumo das sociedades democráticas, tem limites e eles se encontram na intolerância dos fanáticos e extremistas.
       Na verdade, dois são os vetores da brutalidade: o medo e a loucura. Os grandes assassinos são movidos pela paranóia, e a paranóia oscila entre o ilusório sentimento de absoluta potência e a frustração da impotência. É dessa forma que Adorno, em Mínima Moralia, diz que o fascista é um masoquista, que só a mentira transforma em sádico, em agente da repressão.
       Quem são esses jovens embrutecidos que agrediram um nordestino junto à Estação das Barcas, em Niterói – e foram contidos pelas pessoas que ali se encontravam? São trastes humanos, ainda que sejam trabalhadores e estudantes, tenham família e amigos. O que os faz reunir-se, armar-se, sair às ruas, a fim de agredir e - quando podem – matar outras pessoas?
       Individualmente, apesar de suas artes marciais, seus socos ingleses, seus punhais e correntes de aço, são apenas seres acoelhados, agachados atrás de si mesmos, que só crescem quando se agrupam e se multiplicam, em suas patas, seus punhos, suas armas.
      Eles não nasceram com garras, nem tendo a cruz suástica e outros símbolos  riscados  na pele. Foram crianças iguais às outras, que encontraram pela frente uma sociedade brutalizada pelo egoísmo.
     Não é difícil que tenham sentido no lar o eco de uma civilização corrompida pela competição e destruída, em sua alma, sob o capitalismo sem freios. Às vezes nos esquecemos que só um por cento dos homens controla toda a riqueza do mundo.
      Tampouco nasceram assim os que matam os moradores de rua, movidos pelo mesmo medo e pela mesma idéia de que é preciso manter as cidades “limpas”. Nestes últimos meses, tem aumentado o número de moradores de rua assassinados em todo o país – mas mais intensamente em São Paulo, no Rio, em Belo Horizonte,  em Goiânia.
      De acordo com as estatísticas, 195 deles foram mortos em 2012 e nos primeiros meses deste ano. A imprensa internacional está debitando o massacre à conveniência de “sanear” as maiores cidades, antes do afluxo de visitantes que se esperam para a Jornada Internacional da Juventude e a Copa das Confederações, neste ano, e para a Copa do Mundo, no ano que vem.
      É bom lembrar que a matança  de crianças na Candelária, foi atribuída a uma “caixinha” de comerciantes da região, interessados em varrer as ruas desses bichos “incômodos e sujos”, que são os meninos pobres.   
      Há historiadores e antropólogos que amenizam o mal-estar contemporâneo diante dessa realidade, com a afirmação de que, desde as cavernas, o homem é naturalmente predador. Ocorre que, contra essa perturbadora condição de bichos que somos, prevaleceu o sentimento de solidariedade que nos tornou humanos, e foi possível sobreviver às catástrofes naturais, como os terremotos e as pestes, e às guerras continuadas. Mas, dentro da idéia dialética de que a quantidade altera a qualidade, chegamos a ponto insuportável.   
      Há dois caminhos na luta contra essa nova barbárie. Um é o da fé religiosa, outro o da razão materialista. A fé – um acordo entre o homem primitivo e o mistério da vida, a que ele deu o nome de Deus – tem sido o principal suporte da espécie, sempre e quando ela não se perde no fanatismo.
       A razão se encontra com a fé no exercício do humanismo. Mas há sempre razão na fé, como há  fé na lógica do ateu. As duas posturas são de autodefesa da sociedade humana e se realizam na coerente ação política. Como disse Tomás de Aquino, a filosofia das coisas humanas só se concretiza com a prática da política.
       Há novos pensadores, sobretudo na velha França, que buscam recuperar o humanismo de Marx, o do jovem filósofo dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, de 1844, e as suas reflexões sobre a alienação. O trabalho de Marx correspondeu à necessidade de defesa dos trabalhadores contra o liberalismo do século 19, e a desapiedada exploração dos pobres pelas oligarquias burguesas, substitutas do velho feudalismo.
       Retornar a Marx é buscar novas e mais eficazes respostas contra o neoliberalismo de nossos dias. É ainda possível a aliança entre o humanismo cristão e os pensadores agnósticos, fundada em uma constatação fácil, a de que é preciso salvar o homem de si mesmo. É urgente salva-lo do barbarismo reencontrado na estupidez do egoísmo neoliberal. Isso faria do planeta o seguro espaço da vida. O retorno esperado à Teologia da Libertação é uma das vias de acesso à Terra Prometida.
       O filósofo francês Dany-Robert Dufour, em um de seus ensaios, pergunta que homem emergirá do ultraliberalismo de hoje. Não é necessária a pergunta: ele já está aí, no corpo volumoso adquirido nas academias e nutrido de anabolizantes; na cabeça reduzida pelas mensagens de uma cultura castradora, fundada no efêmero e no inútil; na pele usada como o anúncio de cada um, mediante as tatuagens; na ilusão da fama e da eternidade, nas postagens arrogantes no Facebook; no ódio ao outro, celebrado no culto à morte.
       Essa  visão nublada do mundo está contaminando grande parte de nossa juventude, nas escolas e universidades. É preciso que as escolas deixem o tecnicismo que as reduz, e voltem ao módulo ético, para fazer dos homens, homens, e deles afastar os instintos dos predadores.
       É preciso reagir. Os alemães dos anos 20 e 30 não reagiram, quando grupos de nazistas atacavam os judeus e comunistas. Os democratas europeus não reagiram contra as chantagens de Hitler no caso do Sarre, da anexação da Áustria, do ultimato de Munique.  Dezenas de milhões pagaram, com o sofrimento e a vida, essa acovardada tolerância.  
       

29 de abr. de 2013

OS APLAUSOS AOS CHILENOS



   
(HD)-Na última quarta-feira,  a seleção brasileira foi vaiada, e a chilena foi aplaudida, em jogo amistoso em Belo Horizonte, no recém-inaugurado novo estádio do Mineirão. Chamou a atenção, de todos os torcedores, a postura de absoluto respeito dos jogadores da equipe chilena por sua nação, perfilando-se, com a mão sobre o peito, para cantar, com orgulho e firmeza, o hino nacional de seu país, contrastando com a atitude acintosa de nossa seleção.

   Não há como apagar da mente a imagem do preparador  Carlos Alberto Parreira, ex-técnico da seleção brasileira, mastigando, displicentemente,  chicletes, ou a de jogadores brasileiros se coçando, ou gaguejando o Hino Nacional.

  Certos símbolos não se devem ao acaso. Eles têm o papel de carregar a idéia de Nação, ao longo do tempo; de representar um povo e a sua história, seus heróis e o seu território: os valores e os ideais de um país.

   Eles deveriam, portanto, ser conhecidos por todos os cidadãos que tiveram  o privilégio de ter nascido em nosso chão. A eles devemos recorrer, sempre, para celebrar o Brasil: os estandartes têm que ser erguidos e os hinos cantados, com júbilo, nos bons momentos, e indignação, sempre que a liberdade e a dignidade de nosso povo se encontrarem ameaçadas. Assim ocorreu,  nos últimos cem anos, nas manifestações populares, contra o afundamento de nossos navios e exigindo a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial; nos protestos contra o regime militar; na campanha das Diretas Já; ou nos memoráveis comícios, que, com a eleição de Tancredo Neves nos levaram à redemocratização.

    O Hino Nacional deveria ser cantado, em primeiro lugar, pelos nossos jogadores, com o mesmo fervor de outras orações que, de vez em quando,  proferem de mãos dadas, em altos brados, antes de jogos importantes.  Todo homem é livre para adotar o Deus ou a religião que preferir, ou, até mesmo, não adotar nenhuma, nem aceitar a idéia de Deus.

    A Pátria, assim como a família, não se escolhe, a não ser que alguém resolva trocar de nacionalidade. A Pátria se herda, como se herda o sangue e o nome do pai, o afago da mãe, o retrato do avô. Na Pátria  - e milhares já morreram para defender a nossa - estão todos aqueles que nos antecederam, e que, nos seus genes e vicissitudes, nos legaram o misterioso privilégio de viver.

     Nas concentrações, mais do que preparo físico e treinamento, falta que todas as manhãs se hasteie a nossa bandeira e que se cante (e não se tartamudeie) o Hino Nacional. Trata-se de um ritual cívico, que também deve voltar às escolas. É preciso “sentir” a pátria, com a voz forte, a mão sobre o peito, ao cantar  o hino nacional, como fizeram os chilenos quarta-feira. E, aos jogadores, corpo técnico e dirigentes, incluído o presidente da CBF, faltam vergonha,  reverência e,  amor pelo Brasil. 


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28 de abr. de 2013

ESTÓRIA DE DOMINGO - O CÉU VARIANTE


“O céu está sempre mudando, porque as estrelas caminham, de dia e de noite. O céu de mais perto é também assim. Tirando fora os dias encobertos e os só de azul, quando a gente olha é sempre diferente, porque as nuvens não param de mudar de jeito”.
              Eu o ouvia, calado. Tinha 14 anos e  procurava um lugar no mundo. Estávamos em  dia solteiro, dia sem compromisso, na beira do rio. Talvez fosse o Suaçuí Grande, talvez o Santo Antonio; beira de rio é sempre igual. Ainda o vejo, sentado no tronco caído, que servia de banco aos que esperavam cruzar para o outro lado. Ele já batera na lata, servindo de sino, que pendia do galho da goiabeira, chamando o barqueiro. Eu sentara na pedra, em frente. O homem falava como se fosse espírita, padre ou pastor, mas a cara, nunca me engano, era de sujeito ruim. Não disse nada, fiquei procurando aonde ele me queria levar.
           “Com a gente, é a mesma coisa. A gente é como o céu, como o rio, ou aquela matinha, do outro lado. Está sempre diferente. Hoje amanheci pensando uma coisa. Foi só tomar meu café com jacuba, e  virei outro. Nem vinha atravessar o rio; eu tenho lá o que fazer do outro lado? Tenho não, mas  deu vontade, e vontade eu acompanho, se a gente não acompanha a vontade, não é dono da vida. E da minha, sou dono. Você não é dono da sua”?
          Sorri, de leve. Só era dono do meu companheiro Granadeiro, que,  ao lado, rosnava, divertido, contra a lagartixa que subia o tronco meio seco de um barbatimão. No caso que minha vida tivesse dono, o dono seria o cachorro. Meu irmão ele já era, sem raça, sem frescura, sem medo. A gente era um do outro.
         Granadeiro esqueceu o bicho, olhou-me,  do sério jeito dele; fiquei atento. Quando o barqueiro chegou, o cão desapareceu, latindo ao longe. Disse ao desconhecido que fosse só. Não podia viajar sem o cão. O homem quis ajudar a procurá-lo, agradeci.
         Tive logo a certeza de que Granadeiro, mais uma vez, me salvara a vida. 

O GOLPE DA INFORMAÇÃO



(RB)-Há 48 anos, quando o Brasil vislumbrava reformas constitucionais necessárias a seu desenvolvimento, os Estados Unidos financiaram e orientaram o golpe militar. E interromperam uma vez mais um projeto nacional proposto em 1930 por Vargas. Os acadêmicos podem construir teses sofisticadas sobre a superioridade dos países nórdicos para explicar o desenvolvimento da Europa e dos norte-americanos e as dificuldades dos demais povos em acompanhá-los, mas a razão é outra. Com superioridade bélica, desde sempre, impuseram-se como conquistadores do espaço e saqueadores dos bens alheios, os quais lhes permitiram o grande desenvolvimento científico e militar nos séculos 19 e 20 e sua supremacia sobre o resto do mundo.
Pode-se ver a origem do golpe de 1964 mais próxima uma década antes. Em 1953, diante da resistência de Getulio, que quis limitar as remessas de lucros e criou a Petrobras e a Eletrobras para nos dar autonomia energética, a ação “diplomática” dos Estados Unidos cercou o governo. Com o aliciamento de alguns jornalistas e dinheiro vivo distribuído aos grandes barões da imprensa da época, construiu a crise política interna. Entre a lei que criou a Petrobras e a morte de Getulio, em 24 de agosto de 1954, o Brasil viveu período conturbado igual aos três anos entre a renúncia de Jânio e 1964.
A propósito do projeto de Getulio, seria importante a tradução no Brasil de um livro no qual essa operação é narrada em detalhes:The americanization of Brazil – A study of US cold war diplomacy in the third world, 1945-1954. Um estudo sobre a diplomacia norte-americana para o Terceiro Mundo em tempos de Guerra Fria. O autor, Gerald K. Haines, é identificado pela editora SR Books como historiador sênior a serviço da CIA, o que lhe confere toda a credibilidade.
Haines mostra como os donos dos grandes jornais da época foram “convencidos” a combater o monopólio estatal, até mesmo com textos produzidos na própria embaixada, no Rio. E lembra a visita ao Brasil do secretário de Estado Edward Miller, com a missão de pressionar o governo a abrir a exploração do petróleo às empresas norte-americanas. O presidente da Standard Oil nos Estados Unidos, Eugene Holman, orientou Miller a nos vender a ideia de que só assim o Brasil se desenvolveria. Mas o povo foi às ruas e obrigou o Congresso a impor o monopólio.
A domesticação dos meios de informação do Brasil começara ainda no governo Dutra. Os norte-americanos usaram as excelentes relações entre os intelectuais e jornalistas e o embaixador Jefferson Caffery, nos meses em que o Brasil decidira por aliar-se aos Estados Unidos na luta contra o nazifascismo, em benefício de sua expansão neocolonialista.
A criação da Petrobras levou os ianques ao paroxismo contra Vargas, e os meios de comunicação acompanhavam a histeria norte-americana. A estatal era vista como empresa feita com o amadorismo irresponsável dos ignorantes.
A morte de Vargas não esmoreceu os grupos que tentaram, em 11 de novembro do ano seguinte, impedir a posse de Juscelino. O golpe de Estado foi frustrado pela ação rápida do general Teixeira Lott. Em 1964, a desorganização das forças populares favoreceu a vitória dos norte-americanos, que voltaram a domesticar a imprensa e o Parlamento e manipularam os chefes militares brasileiros.
Os êxitos do governo atual e a nova arregimentação antinacional contra a Petrobras – agora com o pré-sal – devem mobilizar os trabalhadores que não estão dispostos a viver o que já conhecemos. Sabem que a situação internacional tende para a direita, e não podemos repetir apenas que o povo esmagará os golpistas. É necessário não só exercer a vigilância, mas agir, de forma organizada e já, para promover a unidade nacional em defesa do desenvolvimento de nosso país. 


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26 de abr. de 2013

A ALEMANHA, DE NOVO.



(JB)-Todos os povos do mundo têm seu orgulho nacional, o que os faz supor serem melhores que  os demais. Em alguns casos, ostentam seus conhecimentos técnicos; em outros, seu talento artístico, e, nos casos extremos, a excelência racial. Em nome dessa superioridade, reivindicam o direito de governar os outros povos. Mas, no interior dessas sociedades presunçosas há – felizmente – os que percebem as coisas com lucidez.

        A Alemanha é um país estranho. Deu ao mundo alguns dos melhores pensadores humanistas, ao longo dos séculos. As idéias igualitárias encontraram ali o terreno fértil para que se desenvolvessem e encontrassem instrumentos coletivos de transformação da sociedade. As idéias socialistas nasceram da associação entre o pensamento filosófico, a solidariedade e a luta dos trabalhadores contra a opressão. Ao mesmo tempo, ali medraram o militarismo, o culto ao corpo, a fascinação pela beleza, e o desprezo aos débeis, aos pacifistas, aos enfermos, aos diferentes de um modo geral.

       O racismo sempre existiu em todos os povos, mas na Alemanha ele conduziu à brutalidade que se conhece.

        Ontem, Portugal lembrou a bela jornada da Revolução dos Cravos. Suas razões, seus atos e seus resultados são conhecidos. Os portugueses se livraram da carga de um colonialismo anacrônico, redigiram uma constituição avançada, deram passos enormes rumo a um regime plenamente democrático. A direita, no entanto, ao tomar o governo fez reverter essas conquistas, e Portugal se entregou às razões neoliberais, além de aliar-se a Washington, seguindo a Espanha, na ação contra o Iraque. Um ano depois de Lisboa, era a vez de Madri – com mais dificuldades, é certo – iniciar o processo de sepultamento do período ditatorial de Franco.

        Espanha e Portugal passam hoje por imensas dificuldades sociais. Quase um terço dos espanhóis em idade de trabalhar estão desempregados (27,16%). Em Portugal, a taxa é menor (17,5%), mas as dificuldades não o são.

        Os dois países executam uma política orçamentária enlouquecida, a fim de pagar as dívidas assumidas com o sistema financeiro internacional. Mas se a situação é grave na Península Ibérica, não é muito melhor no continente. A Itália, que havia sido entregue a um fiel servidor dos bancos, Mario Monti, não conseguiu superar a crise política, e teve que se apoiar em um dos poucos homens sensatos do país, Giorgio Napolitano. A França começa a assustar-se com o desemprego. Os britânicos não saem das ruas, em protesto contra a mal chamada “austeridade”.

        Como lembrou o grande estadista português Mário Soares, em entrevista reproduzida ontem neste jornal, os países podem deixar de pagar seus débitos, se não conseguirem fazê-lo, e ninguém morre por isso. É velho o entendimento de que, embora todos devam cumprir os pactos, situações de força maior conduzem às renegociações necessárias.

        A crise econômica européia é conseqüência das fraudes e incompetência de alguns dos grandes bancos do mundo que se associaram para a prática do crime organizado. Em lugar de punir os banqueiros irresponsáveis, que devem responder com seus bens e o castigo da justiça aos delitos cometidos, os governantes europeus, sob a arrogante determinação de Frau Merkel, exigem os sacrifícios de seus povos, a fim de reunir os recursos a serem pagos ao “mercado”.

      A situação é dramática, com hospitais sendo fechados; a mortalidade infantil retornando, o desespero assolando as camadas mais débeis da sociedade, e o racismo em ascensão.

      O presidente de Portugal, Cavaco Silva, embora tenha feito um discurso dúbio, resumiu a situação de que o país está sofrendo “fadiga de austeridade”, da mesma austeridade que todos os governantes europeus estão impondo a seus cidadãos. Mas não deixou de exigir que Portugal “honre seus compromissos”, ou seja, que continue a sua política de corte de gastos sociais.

      A pequena e sacrificada Grécia, submetida a um regime de fome pelas exigências da “troica” (A Comissão Européia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional) parece decidida a reclamar da Alemanha 126 bilhões de euros, como reparação de guerra. Durante três anos de ocupação do país, de 1941 a 43, os alemães mataram de fome mais de 300.000 pessoas, destruíram toda a infraestrutura do território e obrigaram os gregos a pagar todos os gastos da ocupação. Sabemos que sua postulação é inútil. Os alemães não tomarão conhecimento da reclamação.

       E, tal como ocorreu com a Europa dos anos 30 e 40, todos procuram apaziguar-se com Berlim. A Alemanha que, com Willy Brandt, deu provas ao mundo de sua disposição para a paz, recorre hoje à sua superioridade econômica a fim de avançar no velho propósito de dominar o continente. A única esperança é a de que a outra Alemanha reaja nas urnas e volte ao bom senso de homens como Brandt. É provável que ainda haja alguns. 

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25 de abr. de 2013

UM SANTO PARA OS POBRES


(HD)-Um bom sinal: o novo papa determinou o desbloqueio do processo de beatificação – passo prévio à canonização – de Dom Oscar Arnulfo Romero, o arcebispo de El Salvador, assassinado pela ditadura militar.  O processo, iniciado em 1997, 17 anos depois da morte do arcebispo, repousava nos arquivos do Vaticano. Segundo a Cúria, era preciso saber se a execução fora martírio em defesa da fé, ou provocada por sua militância política.
               El Salvador, desde o ano anterior, estava sob uma junta militar implacável, com esquadrões da morte que eliminavam a esmo, em todo o país.              Dom Romero, com todo o seu prestígio, buscava a paz. Diante da escalada do terror, fez um apaixonado apelo aos militares, conclamando-os a  não  assassinar os jovens. O apelo foi sua sentença de morte.
             Em pleno governo Carter,  que apoiava a repressão com agentes da CIA e conselheiros militares, além de mercenários e armas, pagos com fundos secretos, Dom Romero rezava a missa na capela de um centro hospitalar de tratamento de cancerosos, quando um sicário o matou, em 24 de março de 1980.
             Era o segundo ano do polonês Wojtyla no papado, empenhado em apoiar o sindicato anticomunista Solidarinost, com dinheiro do Banco Ambrosiano, como instrumento para a derrubada do governo da Polônia. Não tomou conhecimento do martírio do arcebispo.
           Em 1990, já com a situação de El Salvador mais ou menos normalizada, seus bispos encaminharam ao Vaticano o pedido de canonização de Dom Romero.  Ratzinger, ao suceder João Paulo II, manteve o mesmo comportamento, o de fazer de conta que o processo não existia.
              João Paulo II, que bloqueara o processo em favor de D. Oscar, com a desculpa do provável envolvimento político do arcebispo, não hesitou em fazer do fundador da Opus Dei, e parceiro de Franco no regime brutal da Espanha, José Maria Escrivá de Balaguer, santo da Igreja, 27 anos apenas depois de sua morte.
             O papa Francisco, que procura salvar a Igreja, buscando conciliar suas correntes internas, dá, assim, mais um passo em direção à teologia dos pobres, que vem sendo sufocada na América Latina a partir da morte de João 23. Durante o pontificado de Paulo 6º, a ação contra o grupo de vanguarda foi mais contida, mas com a eleição do papa polonês – filho de um oficial do Exército – a ordem foi  amordaçar os teólogos libertários, como ocorreu a Leonardo Boff, e a muitos outros, condenados ao “obsequioso silêncio”. Alguns resistiram, com sacrifícios, à onda conservadora, como Dom Pedro Casaldaliga, e Dom Paulo Arns.
            A beatificação de Dom Oscar significará o reconhecimento tácito de que os que foram perseguidos pelo Vaticano, nestas últimas décadas, estavam a serviço da Fé, porque estavam a serviço dos pobres e dos oprimidos, como esteve Jesus. 

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23 de abr. de 2013

OS JUDEUS, ENTRE VARSÓVIA E ISRAEL


              
(JB)-Embora, pelos cânones hebraicos, não fosse judeu, porque nascido de mãe não judia, Marcos Magalhães Rubinger era orgulhoso de sua circunstância, e se identificava como judeu. Antropólogo conceituado, e homem de esquerda, ele foi compelido ao exílio pelo regime militar brasileiro. Ao encontrá-lo na Suíça, em 1967, logo depois da Guerra dos Seis Dias, que consolidou a posição do Estado de Israel no território palestino, ele estava desolado: os judeus haviam dado mais um passo atrás de sua plena integração à Humanidade.
            “Continuamos no gueto” – me disse. “No grande gueto que nós mesmos instalamos e, tal como ocorreu com o Gueto de Varsóvia, iremos murá-lo e selá-lo por dentro”. A grande muralha de Israel ainda não fora levantada.
           Talvez não haja tema histórico mais discutido do que o do povo de Israel. Só isso basta para atestar a sua importância na formação da idéia do Ocidente nestes dois últimos milênios. A sua presença na Europa e no mundo conquistado pelos romanos e seus sucessores, mais do que documentada, é cercada de mitos.
           Não há dúvida de que foi povo perseguido, obrigado a isolar-se em sua fé, e a defender-se, como lhe era possível, a fim de impedir o genocídio. Essa defesa os levou a buscar o conhecimento e a riqueza, que não lhes bastou para impedir a perseguição, nem foi suficiente para conjurar sua divisão entre judeus ricos e judeus sem dinheiro, para lembrar a obra prima de Michael Gold, pseudônimo do jovem escritor americano Itzok Isaac Granich.
          Nestes dias de abril e maio, os judeus – e os humanistas mais atentos – lembram dois episódios fortes na história contemporânea: o Levante do Gueto de Varsóvia, em 1943, e a criação do Estado de Israel, em 1948. Há quem associe os dois fatos, como se tratasse de uma coisa só; há quem assegure que, sem o Levante, não teria havido o segundo êxodo e sua conseqüência política, e há os que separam os dois episódios, dando a cada um deles sua própria razão.
          Como é costume ocorrer na História, todas as três versões são corretas, – o que difere é a contribuição de cada uma delas no desenvolvimento posterior da questão judaica.
         Recente artigo da historiadora norte-americana Marci Shore, publicado pelo New York Times, ao reconstruir a crônica da resistência dos judeus de Varsóvia, abre o caminho para nova interpretação dos fatos. Ela mostra como os judeus de Varsóvia se encontravam inermes diante do ocupante nazista. E revela que a resistência, naqueles dias de abril e maio de há 70 anos, foi  ato de dignidade, assumido por jovens dispostos a morrer lutando, e não conformados a ver a resignação de seus pais e avós, ao embarcar rumo aos campos de extermínio a poucos quilômetros de Varsóvia.
        Os nazistas, depois da ocupação da Polônia, empurraram, pouco a pouco, todos os judeus da cidade ao imenso gueto e os obrigaram a erguer espesso muro em volta: as únicas entradas e saídas eram vigiadas por soldados das SS.
       De acordo com a sua política perversa, criaram, em 1942,  um Conselho Judaico, encarregado de indicar a lista diária dos que deviam ser encaminhados às câmaras de gás e aos trabalhos forçados, presidido por Adam Czerniakov.
        No dia 22 de julho daquele ano, os nazistas decidiram iniciar a deportação em massa dos judeus do Gueto rumo a Treblinka e a Auschwitz. Como conhecesse o destino que os esperava, no dia seguinte Czerniakow engoliu uma cápsula de cianureto.
        Não houve unidade na luta de resistência. Os sionistas de extrema direita formaram seu próprio corpo de combate. Os mais duros guerreiros foram jovens, alguns deles religiosos, mas a maioria de agnósticos e marxistas, ligados aos movimentos socialistas de esquerda, como a Bund (Liga) e com forte presença de comunistas. Quando os nazistas atearam fogo ao Gueto, o núcleo duro da resistência refugiou-se em um bunker, sob o comando do jovem Marek Elderman. Ele e seus companheiros fugiram pelos esgotos fétidos, nos quais a maioria morreu asfixiada pelos gases. Quarenta deles sobreviveram, alguns se aliaram aos guerrilheiros poloneses e russos, e muitos sobreviveram à Guerra.
        Elderman, depois da derrota alemã, tornou-se cardiologista – e jamais quis viver em Israel. Ele, e muitos outros, defendiam a cultura ashkenazi, fundada no uso do ídiche como o idioma de seu povo, e um “modus vivendi” com os povos conhecidos, o que seria facilitado pelo resultado do conflito; não a ocupação de um território no meio do deserto, ao lado de grupos étnicos estranhos,  nem a ressurreição de uma língua morta, só usada nos ritos religiosos, como idioma oficial.
        Em razão disso, o Estado de Israel não o considera herói nacional. Ele era um dos que, como Rubinger, defendiam o convívio dos judeus com os outros povos, e achava um erro estratégico a criação de Israel, que vinha sendo planejada desde o fim do século 19.
       Os sionistas se apropriaram da gesta heróica dos combatentes do Gueto de Varsóvia, como se tratasse de uma vitória sua. Na realidade foi uma vitória do melhor do povo judeu, dos filhos de trabalhadores, de intelectuais engajados nos movimentos políticos clandestinos, dos que não aceitavam o triste e resignado cortejo de seus pais e seus irmãos menores rumo às câmaras de gás.
       O Levante foi a resposta viril ao Holocausto,  e redimiu, na bravura de seus jovens, o grande povo judeu. Se a Humanidade tiver algum futuro, a resistência do Gueto de Varsóvia será vista, nos séculos a vir  – como muitos a vêem hoje – como ato muito mais importante do que a criação do Estado de Israel.
       Ela se equivale à dura resistência do povo de Stalingrado, com uma virtude a mais. Em Stalingrado os combatentes contavam com a nação. Em Varsóvia, em uma Polônia marcada pelo racismo, os jovens judeus estavam sós.
       O general Jurgen Stroop, comandante das tropas de Varsóvia que massacraram os habitantes do Gueto, foi condenado à morte em 1951 e executado pelo governo polonês. Mas cumprira a sua missão, conforme relatório a Berlim: em maio de 1943 já não havia um só bairro judeu em Varsóvia.
       Mais de 300.000 judeus haviam sido enviados para as câmaras de gás, e se calcula que mais de 10.000 morreram calcinados pelas chamas em que ardeu o Gueto, naqueles dias de maio.
       No dia 7 de dezembro de 1970, como correspondente deste Jornal do Brasil, assisti ao Chanceler Willy Brandt em gesto grandioso, ajoelhar-se diante do marco evocativo do Gueto de Varsóvia. O líder socialista, com a autoridade de quem resistira, ainda adolescente, ao nazismo, ajoelhou-se, em atordoante silêncio, em homenagem aos combatentes de 1943 – ou, seja, de 27 anos antes.
        Esses registros históricos e a situação atual de Israel – com tantos e eminentes judeus que se opõem ao genocídio dos palestinos e buscam construir a paz – tornam proféticas as palavras de Marcos Rubinger: trata-se de imenso gueto, erigido em terras estranhas, murado por dentro. Os jovens de Varsóvia lutaram e morreram para que não houvesse muros.
       Alguns, como Marek Elderman, sonhavam com uma única Humanidade.


       

22 de abr. de 2013

ESTÓRIA DE DOMINGO-AQUELA MANHÂ DE SETEMBRO


   
  
     Não haverá manhã como aquela, em nenhum dia que vier ao mundo. Disso meus olhos sabem e sabe o meu coração. A noite me apanhara na entrada do povoado, que percebi pelas luzes fracas, algumas de lampião a querosene, outras, tênues e hesitantes, na certa de lamparinas de óleo de mamona.
    Eu perdera a estrada mais larga, que levaria ao meu destino, talvez em instante de cochilo, e o cavalinho tordilho, o primeiro que eu tive, bandeou para a trilha. Naquele tempo, supersticioso, eu sempre acreditava que era melhor confiar o destino ao acaso. Quem quiser achar-se, que se perca, era a frase que me servia. Tinha minhas razões: ao desviar-me da rota, havia escapado de tocaias e tempestades, de andaços de doença e até mesmo de onças, e disso soube depois.
    Fui seguindo a sombra da tarde, o que me levava ao leste, o que contrariava minha tenção, mas segui o focinho do tordilho, para o qual ainda não arranjara nome. O que me disseram que tinha antes, Borboleto, não me agradava. Ainda se fosse égua, e se chamasse Borboleta, ia bem; mas macho inteiro e sério,  esse nome era uma ofensa ao bicho, dócil no passo, mas esquentado no trote e no galope.
    Com a noite chegando, já preparava o corpo para pernoitar na estrada e buscava um lugar no jeito para espichar o baixeiro e fazer cama, quando um clarãozinho de nada, por cima do morrinho, me deu esperança. Fui em frente, tocando de leve com a tala no lombo do bicho, para que se apressasse, e percebi as luzinhas. Não foi preciso mais: ele, talvez cheirando o ar, trocou o passo pela marcha, e chegamos ao povoado.
     Todas as portas estavam fechadas, mas não há lugar, por pequeno que seja, sem um comercinho que fecha mais tarde. Depois de recensear um pouco as duas ruas, vi a porta escancarada. Cheguei e me indicaram a casa da moça  que dava pouso aos passantes, e era recatada com os do lugar. “Ela não gosta dos homens daqui, diz que todos eles são seus parentes, mas não é a mesma coisa com os de fora”, informou o dono do botequim, antes de me servir uma cachaça curtida em cipó-cravo.
     Hesitei um pouco, antes de bater à porta. Um leve sobressalto parecia prevenir-me - quem sabe? - de uma emboscada. Refiz-me e bati à porta, e dentro não havia luz. “Espera um pouco”, ouvi, mas continuava a escuridão, quando ela vestida com uma camisola pesada e comprida, abriu a porta e me levando pelo braço, empurrou-me para dentro de um quarto de solteiro. “Tem uma lamparina aí dentro, você tem fósforo?”
      Saiu e entrou para seu próprio quarto, ouvi o ferrolho ser passado. Duvidei da informação do dono da birosca. Ela não gostava também de estranhos.
      Cansado, tentei ainda ficar acordado, esperando que ela fosse ao meu quarto, mas dormi. Acordei com todos os galos do povoado cantando ao mesmo tempo. A luz da madrugada entrava pela beira do telhado sem forro. Saí para o quintal, havia uma bica; depois de outro ato matinal, impositivo, entre duas moitinhas de cambará, lavei o rosto e molhei os cabelos.
      Ela, então, apareceu, morena, com os olhos negros mais belos que eu jamais vira, e me convidou para contemplar o amanhecer pela janela de seu quarto. O quarto destoava do resto da casa, pintado de azul e acortinado. Abriu a janela, desfazendo o laço da cortina, e o sol começou a levantar-se sobre uma serrinha que eu não vira. Do que se passou, cavalheiro que sou, não dou detalhes. Deixou-me descansar dos meus deveres de hóspede e me preparou o prato modesto de ovos com torresmos e feijão machucado, e me disse que a manhã acabara, e eu devia seguir viagem – mas não me indicou destino.
     Aquela foi a mais bela manhã que meus olhos viram.

21 de abr. de 2013

EM BUSCA DE ESPAÇOS


(HD)-Homem do campo, Hélio Garcia é conhecido pelas metáforas rurais, a fim de explicar o complicado universo da política. Em uma delas, desdenha o efeito dos comícios nas campanhas eleitorais: “Hoje em dia, ninguém mais faz comícios, nem mexe com gado gir”. Na verdade há ainda criadores do gir. Mudanças genéticas melhoraram o desempenho desse animal, tanto para a produção do leite, quanto para o abate. Quanto aos comícios, é certo que os programas de televisão os substituem, mas apenas em parte. A presença física dos candidatos e seu contato com o povo ainda decidem uma eleição.
            Outra metáfora de Hélio, que pode parecer ofensiva - mas não é, se analisada devidamente - é a de que campanha eleitoral é como caminhão carregado de porcos. Enquanto ela não se desenvolve, na fase dos preparativos, é como se fosse o caminhão cheio, antes de partir. Os animais, inquietos, buscam espaços, mordem-se as orelhas e os rabos, grunhem e gemem. No momento em que o caminhão começa a rodar, eles procuram ajeitar-se ao movimento.
         A política é a disputa dos espaços de poder. E, como em política, só pode quem pode, e só se pode o que se pode, para obter espaço é preciso conceder espaço. Os espaços  se definem e se limitam mediante as negociações. Política é conversa, é a busca dos acordos e entendimentos, tanto na situação quanto na oposição; é a arte de ceder, para obter, seja no atendimento às ambições pessoais de mando, seja nos programas de ação ideológica.
         A oposição está dividida, o que não parece ser mau para os que defendem a reeleição da atual presidente da República. Os partidários do ex-governador José Serra, entre eles o ex-comunista Roberto Freire, e o atual governador de Pernambuco, Eduardo Campos, organizam novo partido político, com o propósito de disputar as eleições do ano que vem.
       Há algumas dificuldades nesse projeto. Dificuldades legais, em primeiro lugar, diante da legislação atual, que procura impedir o surgimento de novas siglas. E dificuldades políticas, que não são menores.
      Ao contrário do que imaginam possível, Serra não será capaz de mobilizar, em torno de seu nome, parcela expressiva dos eleitores oposicionistas de São Paulo.      Nem Eduardo Campos empolga o Nordeste no apoio à sua postulação.
     Ali, já começaram a surgir as primeiras dissidências. O candidato não conta com todos os governadores eleitos pelo seu partido na região.  A cisão mais notável é a do Ceará. Cid Gomes, o governador, e seu irmão, Ciro, uma das mais fortes lideranças regionais, e  grande presença nacional, já se opuseram às postulações do governador de Pernambuco. E não há sinal de entusiasmo entre os outros.

19 de abr. de 2013

O BRASIL E A PEC-37 - QUANTO MAIS CONTROLE MELHOR


(JB)-Controlar os controladores foi sempre um desafio à inteligência institucional das sociedades políticas. Os Estados se constroem e, eventualmente, desenvolvem-se ou retrocedem, entre dois pólos da razão: o da anarquia absoluta e o da ordem absoluta, que só se obtém com a tirania. Entre essas duas tendências antípodas, equilibra-se, no centro, o estado republicano democrático.
              A visão aristotélica do homem é a de que ele é uma passagem entre o animal e o anjo. Esse caminho à perfeição se deve a duas categorias do espírito, a inteligência e a ética. Nem sempre a inteligência é servidora da ética, como nem sempre a lógica é servidora da razão. Como advertem antigos pensadores, conhecer é dominar.
              O Estado, qualquer que seja a ideologia que o mova, é necessariamente coercitivo. Cabe-lhe manter corpos policiais, a fim de garantir a coesão da sociedade e o exercício da justiça, de acordo com suas normas. Quando essas normas se originam na vontade geral, elas se legitimam no contrato social; são “leis”, laços irrompíveis. Quando as normas são impostas pela tirania, ou pela solércia, é direito e, eticamente, dever da cidadania rebelar-se, com todos os riscos que a sublevação acarreta.
              Estamos agora diante de estranha proposta de emenda constitucional, que veda ao Ministério Público a iniciativa e o poder investigatório, reservando-o apenas aos órgãos policiais. O Ministério Público – como, de resto, nenhuma organização humana – não é perfeito. Antes e depois que a Constituição de 1988 lhe ampliasse os poderes, há o registro de promotores e procuradores envolvidos em atos deploráveis, que vão do abuso de autoridade à extorsão e ao homicídio sem atenuantes.
             Do mesmo mal padece o Poder Judiciário, conforme a denúncia de conhecidos e respeitáveis magistrados. E com raras exceções, os Procuradores Gerais da República, escolhidos mediante o mandamento constitucional de 1988, têm sido contestados por partidarismo, seja na submissão ao governo, seja no exercício de dissimulada oposição. Entre essas exceções, é de justiça mencionar os juristas Aristides Junqueira, Cláudio Fontelles e Antonio Fernando de Souza.
            A PEC-37 quer cercear o Ministério Público. A iniciativa da proposta é de um obscuro deputado federal pelo Maranhão, delegado de polícia do Estado, eleito por partido ainda mais obscuro, o mal chamado PT do B.
           De acordo com o projeto, um parágrafo, castrador do MP, será acrescentado ao artigo 144 da Constituição, determinando que os crimes contra o patrimônio público e, também, os cometidos pelas autoridades do Estado – bem como quaisquer outros delitos – sejam apurados privativamente pela Polícia Federal, e pelas organizações policiais dos Estados e do Distrito Federal.
            O que se pretende é impedir que o Ministério Público, ao investigar os delitos, acompanhe a ação policial e, ao acompanhá-la, fiscalize seus atos, como é de seu dever.
            Contra essa violação da Carta de 1988, que emascula o Ministério Público e o esvazia de uma de suas mais importantes missões, várias entidades, nacionais e internacionais, redigiram e divulgaram a Carta de Belo Horizonte. O documento é firmado, em primeiro lugar, pelo Ministério Público de Minas Gerais, e em seguida, pela Associação Mineira do Ministério Público e mais de uma dezena de outras organizações.
            É de se ressaltar a adesão do Sindicato dos Policiais Federais de Minas Gerais. Mas a reação contra o absurdo não se limita a Minas. Em todo o Brasil, cidadãos conscientes se erguem na defesa do bom senso.
           Quando, por iniciativa da Comissão Arinos, se discutiam as idéias diretrizes da Constituição Democrática – que seria promulgada em 1988 – setores da Polícia Militar e das organizações policiais dos Estados reivindicaram a unificação da atividade. Os constituintes souberam impedir esse absurdo. Para a garantia do Estado de Direito, quanto mais organizações policiais houver, melhor.
           A emulação entre elas é boa. É bom que exerçam competição umas com as outras, só assim podem servir bem ao País. Também, e por iniciativa do  Ministério Público, como já vem ocorrendo, é necessário que elas se investiguem entre si. 
          Uma polícia unificada quase sempre se presta ao arbítrio do poder executivo, quando não faz desse poder e dos outros poderes reféns de seus próprios interesses. Quando um delegado de polícia, de qualquer polícia, se sente isento do controle de outra instituição independente – como são o MP e o Poder Judiciário – os direitos dos cidadãos deixam de existir.
        O princípio de checks and balances – do controle recíproco entre os poderes do Estado -   não deve cingir-se ao seu cimo -  mas descer a todos os níveis da administração pública.
           Se, sob a fiscalização institucional do Ministério Público, há tantas violações aos direitos humanos por parte da polícia, imagine-se o que ocorrerá sem isso. E se registre que as organizações policiais, tanto as militares, quanto as civis, são constituídas, em sua maioria absoluta, por pessoas honradas e corajosas.
           Elas sabem que podem perder a vida durante sua repressão ao crime, como tantas vezes se noticia.  Essas virtudes, no entanto, não podem elevá-las à condição do poder político, esse, sim, privativo do povo que o delega aos seus representantes na direção do Estado.
          O lobby policial em favor da emenda 37 pode não significar isso, mas faz supor que os delegados que a defendem querem ficar sozinhos nas investigações dos crimes financeiros e das quadrilhas organizadas.