Desde
muito miúdo preferia os quartos vazios, os cômodos de pouca serventia, a sala
do oratório. Tão quieto, não pedia cuidados,
mas houve desconfiada arrumadeira da casa que sempre se persignava
quando o via só. “Esse menino conversa com as almas.”
Conversar
com as almas não é difícil em Diamantina. Ele , Bento, tinha muitas almas com
quem conversar. Vinha dos primeiros povoadores do Tijuco, gente que se aprumava
em uma geração para derrear-se na outra. Um clã feroz e fechado, de casamentos
entre primos: todos de olhos esbugalhados e pintas pelo corpo inteiro. O avô, a
quem tocou o fracasso, continuava garimpando pelos córregos de perto, e tinha
as pupilas opacas ao brilho das pedras: em toda sua vida só achara mero xibiu
de meio ponto, que mandara engastar na ponta de um alfinete de gravata. O pai,
menos sonhador, fizera fortunazinha de afastar precisão, fornecendo lenha para
a estrada de ferro no trecho até
Cordisburgo.
Bento
cresceu entre as almas de sua intimidade. Quando ficou rapazinho, o segredo já
não se guardava. Aprendeu leitura só e de repente, e isso assustou a família. O
espanto foi maior quando o viram lendo em voz alta o formulário farmacêutico do
tio-avô, que fora médico no Serro.
Não
saia de casa, a não ser para o quintal em declive, a fim de conversar com seus
mortos sob as jabuticabeiras. Tratava com defuntos de variadas inclinações
entre eles um entendido em passarinhos, que lhe ensinou visgo infalível para
sabiá agarrar-se: mistura de resina de mangueira com leite de mamão e outros
ingredientes.
“Graças
a Deus que é doido manso”, consolava-se o pai. Nunca haviam faltado os loucos
na família, mas os havia violentos, de surrar pais e irmãos. Bento, ao
contrário, nem mesmo com as almas se irritava, ainda que elas lhe mentissem
muito. No principio, as velhas beatas davam crédito a tudo o que ele,
raramente, lhes transmitia. Coisas simples, como, por exemplo, a chuva de uma quarta-feira e a geada de um
domingo. Mas, depois de alguns alarmes falsos, olhavam-no com desconfiança, e
ele balançava os ombros, objurgando contra a cambada de mentirosos.
Talvez
por isso não lhe deram muita atenção quando falou na bilha com diamantes:
O
major disse que, se eu cuidar de umas coisinhas dele que ficaram pra trás, vai
me contar onde ficou a bilhinha com as pedras. Não narrava o resto da história
do major, que só descobrira os diamantes depois de morto; vinham ainda dos
tempos do segundo Contratador, e eram de uma partida desviada da Coroa por um
funcionário desonrado. O major, que era republicano até no além, ria-se quando
falava a Bento, e explicava que os que roubam aos reis sempre servem aos povos.
“Quanto mais pobre o rei, mais ricos os súditos”, sentenciava.
Seguiu
Bento seu destino de proseador com as almas até quando, morto o pai, tocou-lhe
viver com os irmãos a geração da decadência. Sumiram as locomotivas a lenha,
apareceram as movidas a carvão, depois chegou o diesel. A mão-de-obra barata
correu atrás do salário mínimo das cidades, e os irmãos de Bento, sem tempo e
sem paciência, levantaram um quartinho no fundo do quintal e o prenderam ali.
Só uma das irmãs cuidava dele e foi depois de muita insistência que o acompanhou
na meia-noite de um fim de quaresma, para resolver um dos últimos assuntinho do
major: colocar em seu nicho um anjo roubado e então em poder de um bisneto do
oficial, aliás ateu.
Feito
isso, ainda levaram uns cinco meses a acreditar no aviso de Bento: o tesouro
estava em uma vendinha atrás do Mercado. Era preciso juntar uns cobres, comprar
o negócio, que não valia muito, e cavar no lugar certo. Assim se fez: os irmãos
venderam o restinho de herança, vinte alqueires de cerrado, compraram o
comércio. Em duas semanas estavam todos aprumados de novo.
Bento
foi enterrado discretamente em um sábado. Dizem que foi de repente. Mas as
línguas vadias falaram em arsênico e no atestado de óbito de conveniência que
registrava “mal súbito”.
Agora
está feliz com as almas suas amigas – comentou muito mineiro, um dos primos.
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