14 de abr. de 2013

ESTÓRIA DE DOMINGO - O TESTEMUNHO


Guardo em segredo o nome da cidade, porque não desejo violar tácito compromisso de nosso silêncio, mas creio que, passados tantos anos, vale a pena lembrar o que aconteceu. A povoação se  ergue a meio de caliginosa encosta das ser­ras diamantinas; se não fossem caiadas as casas, todos os anos, seriam despercebidas da estrada real que atravessa o fraco cerrado do vale. De baixo, entre os cheiros de araticum e pequi que entonte­cem o viajante, vê-se a torre da igreja, cercada de coqueiros de escassas folhas. São palmeiras que agonizam, mas o seu morrer é len­to: como as oliveiras, são plantas que têm memória, e muitas vezes tentam contar o que viram.    
Estas cidades, deixadas na va­dia aventura dos bandeirantes, não nasceram com projeto e desti­no, mas de cansaço. Seu ouro, quando havia, era pouco e difícil, e seus povoadores já não queriam a fortuna, mas a paz. O moinho d'água e o monjolo trabalham com sua água; a roça de milho se contenta com duas capinas e as ramas de feijão sobem enroladas às hastes. O resto é o queijo, são os porcos, a caça aos magros roedores da serra, e a fé. Fé em Deus e fé rigorosa no Diabo, porque ali, como em qualquer outro ponto do univer­so, continua a guerra entre os dois. Mas há vigilância contínua contra o demônio, cujas manhas se conhe­cem. Ninguém se levanta da cama sem dedicar seu dia a um santo e a alguma penitência. Penitência leve, bem se diga, porque, se há dignidade no ócio, nele também pode haver santidade (aliás de acordo com alguns teólogos do lugar, no céu não há trabalho, e, antes que houvesse a maçã, só Deus trabalhou).
                      Toda explicação vem a propósito daquela Semana Santa. A quaresma já fora complicada. Logo depois do carnaval apareceram,  fora de tempo e de conveniência, nuvens de gafanhotos pardos. Comeram o restinho que ainda havia no campo e, quando se foram, deixaram milhões e milhões de mortos no chão. Foram todos queimados, por ordem do vigário, e para isso se gastaram dois quintos de azeite de mamona. Crepitaram e estouraram, deixando no ar um  cheiro de rapadura. Depois dos gafanhotos houve o sábado de loucuras das crianças. Sem quê nem para quê, as meninas e meninos se reuniram no adro da igreja bem de manhã e formaram a grande roda. Cantaram coisas que ninguém conhecia, com músicas mornas e tristes. Recusaram o chamado para o almoço, e quando, todos juntos, os pais e mães quiseram buscá-los, agarraram-se uns aos outros, bem abraçados. Atemorizados, os pais cantaram o credo.
                     No Domingo de Ramos chegaram uns tropeiros de Mendanha, com o rapaz de fora. Era baixinho, moreno puri,  e encontrara a tropa no Boqueirão Frio, uma passagem gelada no alto da serra. O lugar era tão frio que dava lã em pele de lobo. Quando o encontraram, esta­va enrolado em um cobertor cinzento,  e disse que havia perdido o caminho. Ao lhe perguntarem há quanto tempo estava sem destino, respondeu que "há séculos". Deram-lhe cachaça de Itacambira com carqueja  para cortar a friagem,  e estranharam que ele não tivesse nada, além da roupa e do cobertor. Ele disse que tinha muito, mais do que os bichos, que andavam nus.
Como ninguém o chamasse para abrigá-lo, ficou no rancho, com os tropeiros, e passava o dia inteiro contando casos para as crianças. Na quarta-feira chegou o seminarista, para ajudar o povo a fazer a festa. Como não tinha ordens, ia só pregar para o povo, e orientar a Procissão do Encontro, a Via-Dolorosa e o Enterro.
Na quinta-feira de manhã, todos os meninos e meninas da cidade fo­ram ouvi-lo, e os pais se assusta­ram: teria voltado o demônio daquele sábado?  
Ele lhes disse então que a história que contavam de Cristo não era bem aquela. Quando lhe falaram por onde passara a Via Crucis, explicou que o caminho do Calvário fica mais para Oeste. Também lhes disse que Madalena não era bonita. "Todos eram muito pobres, e os pobres são quase sempre feios".
Com ele, os meninos passaram os dois dias inteiros, embora os pais quisessem expulsá-lo na sexta-feira, por blasfêmia e sacrilégio. O seminarista disse que não convinha, porque no dia da Morte do Senhor era pecado sem absolvição castigar um cachorro; que dizer então de uma criatura humana?
No sábado, alguns mais afoitos e mais encachaçados quiseram pe­gá-lo para sová-lo ao lado do Judas, mas não o encontraram. As crianças disseram que ele se havia ido na véspera, com o seu cobertor às costas, depois de mostrar-lhes a mão direita, com as pontas dos dedos manchadas de sangue seco. Quando perguntaram aos meninos e meninas o seu nome, eles responderam todos juntas, a uma só voz - Tomé.

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