Guardo
em segredo o nome da cidade, porque não desejo violar tácito compromisso de
nosso silêncio, mas creio que, passados tantos anos, vale a pena lembrar o que
aconteceu. A povoação se ergue a meio de
caliginosa encosta das serras diamantinas; se não fossem caiadas as casas,
todos os anos, seriam despercebidas da estrada real que atravessa o fraco
cerrado do vale. De baixo, entre os cheiros de araticum e pequi que entontecem
o viajante, vê-se a torre da igreja, cercada de coqueiros de escassas folhas.
São palmeiras que agonizam, mas o seu morrer é lento: como as oliveiras, são
plantas que têm memória, e muitas vezes tentam contar o que viram.
Estas cidades,
deixadas na vadia aventura dos bandeirantes, não nasceram com projeto e destino,
mas de cansaço. Seu ouro, quando havia, era pouco e difícil, e seus povoadores
já não queriam a fortuna, mas a paz. O moinho d'água e o monjolo trabalham com
sua água; a roça de milho se contenta com duas capinas e as ramas de feijão
sobem enroladas às hastes. O resto é o queijo, são os porcos, a caça aos magros
roedores da serra, e a fé. Fé em Deus e fé rigorosa no Diabo, porque ali, como
em qualquer outro ponto do universo, continua a guerra entre os dois. Mas há
vigilância contínua contra o demônio, cujas manhas se conhecem. Ninguém se
levanta da cama sem dedicar seu dia a um santo e a alguma penitência.
Penitência leve, bem se diga, porque, se há dignidade no ócio, nele também pode
haver santidade (aliás de acordo com alguns teólogos do lugar, no céu não há
trabalho, e, antes que houvesse a maçã, só Deus trabalhou).
Toda explicação vem a
propósito daquela Semana Santa. A quaresma já fora complicada. Logo depois do carnaval apareceram, fora de
tempo e de conveniência,
nuvens de gafanhotos pardos. Comeram o restinho que ainda havia no campo e,
quando se foram, deixaram milhões e milhões de mortos no chão. Foram todos
queimados, por ordem do vigário, e para isso se gastaram dois quintos de azeite
de mamona. Crepitaram e estouraram, deixando no ar um cheiro de
rapadura. Depois dos gafanhotos houve o sábado de loucuras das crianças. Sem
quê nem para quê, as meninas e meninos se reuniram no adro da igreja bem de
manhã e formaram a grande roda. Cantaram coisas que ninguém conhecia, com músicas
mornas e tristes. Recusaram o chamado para o almoço, e quando, todos juntos, os
pais e mães quiseram buscá-los, agarraram-se uns aos outros, bem abraçados.
Atemorizados, os pais cantaram o credo.
No Domingo de Ramos
chegaram uns tropeiros de Mendanha, com o rapaz de fora. Era baixinho, moreno
puri, e encontrara a tropa no Boqueirão
Frio, uma passagem gelada no alto da serra. O lugar era tão frio que dava lã em
pele de lobo. Quando o encontraram, estava enrolado em um cobertor cinzento, e disse que havia perdido o caminho. Ao lhe
perguntarem há quanto tempo estava sem destino, respondeu que "há
séculos". Deram-lhe cachaça de Itacambira com carqueja para cortar a friagem, e estranharam que ele não tivesse nada, além
da roupa e do cobertor. Ele disse que tinha muito, mais do que os bichos, que
andavam nus.
Como ninguém o chamasse para abrigá-lo, ficou no rancho,
com os tropeiros, e passava o dia inteiro contando casos para as crianças. Na
quarta-feira chegou o seminarista, para ajudar o povo a fazer a festa. Como não
tinha ordens, ia só pregar para o povo, e orientar a Procissão do Encontro, a
Via-Dolorosa e o Enterro.
Na quinta-feira de manhã, todos os meninos e meninas da
cidade foram ouvi-lo, e os pais se assustaram: teria voltado o demônio
daquele sábado?
Ele lhes disse então que a história que
contavam de Cristo não era bem aquela. Quando lhe falaram por onde passara a
Via Crucis, explicou que o caminho do Calvário fica mais para Oeste. Também lhes
disse que Madalena não era bonita. "Todos eram muito pobres, e os pobres
são quase sempre feios".
Com ele, os meninos passaram os dois dias
inteiros, embora os pais quisessem expulsá-lo na sexta-feira, por blasfêmia e
sacrilégio. O seminarista disse que não convinha, porque no dia da Morte do
Senhor era pecado sem absolvição castigar um cachorro; que dizer então de uma
criatura humana?
No sábado, alguns mais afoitos e mais
encachaçados quiseram pegá-lo para sová-lo ao lado do Judas, mas não o
encontraram. As crianças disseram que ele se havia ido na véspera, com o seu
cobertor às costas, depois de mostrar-lhes a mão direita, com as pontas dos
dedos manchadas de sangue seco. Quando perguntaram aos meninos e meninas o seu
nome, eles responderam todos juntas, a uma só voz - Tomé.
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