Caíra
um dos cachos de uvas que ornavam a fachada – e o sobrado parecia velho senhor
caolho, de cara manchada pela fumaça da cidade e umedecida das garoas
sucessivas. Em volta, os escombros do pequeno bairro eram como lago terroso. Sobre
cacos de tijolos e reboco tremulavam, na brisa, restos de roupas que um dia
haviam coberto intimidades mornas; emergiam, também, empurradas pela natureza
libertada, plantas vulgares – flores de picão, erva de santa-maria,
vassourinha.
Por que sobrevivera o
sobrado? Que despacho de juiz o preservara da destruição, assinada pelo
governo? Por ali passavam linhas de ferro e outras mais passariam; para que se
movesse era preciso que a cidade se matasse, em bairros como aquele, levantados
no tempo em que as pessoas gostavam de viver.
De quem seria o
sobrado? Não sabíamos os que o habitávamos por aquela demorada época de uma
semana. As tempestades reúnem os homens, como a bonança os separa. Três
orgulhosos vagabundos, sem cara para pedir, tivéramos o instinto dos cães, que
nunca procuram sobras em casas ricas: nosso encontro se fez no mais sujo
botequim que servia aos tristes bordéis da zona. Mas, como estávamos, nem mesmo
as relegadas senhoras daqueles cantos se animariam a compartir conosco teto e
solidão. Alguém falou no sobrado, de janela traseira baixa e aberta – e o
ocupamos.
O sobrado guardava
coisas também desprezadas. Havia a coleção de
almanaques do "Biotônico Fontoura" dos anos 30; havia também
números esparsos de revistas antigas. Uma delas narrava o Acordo de Munique,
com um título que fez Vico rir-se da ingenuidade dos homens: "Enfim,
teremos a paz."
Nós tivemos, no
sobrado, a paz de uma semana. De madrugada saíamos, levando coisas abandonadas,
como papel velho, garrafas vazias e panelas sem cabo, para vender;. e isso
pagava a frugal despensa, suprida de farinha,
torresmos e cachaça.
Preservamos, como
hóspedes honrados, os bens mais caros, como o retrato da senhora, de corpo
inteiro, sombrinha colorida, passeando pelo Jardim Público. A senhora, de
cintura muito fina, a saia bem rodada, devia usar espartilho e Vico comentava
que não devia ser fácil despir uma mulher de espartilho. Imaginávamos e este
era bom jogo para passar o tempo e embromar a fome, a vida e os amores da
senhora. Vico fazia-a prevaricar machadianamente com um presidente de Província
em viagem administrativa à Corte; eu a preferia sofredora e honesta, criando
seus filhos nos preceitos rigorosos da religião e amando, na saudade, um primo
qualquer de Sapucaia.
Havia também a casaca
e a respectiva calça listrada. As traças haviam comido moderadamente da boa
casemira de Manchester, mas a marca era ainda visível no avesso do cós.
Sertório, que era mais velho, vestia o traje de cerimônia para dormir; sendo o
mais magro, era o mais friorento. Vestia-se, olhava-se no espelho meio gasto e
Vico o iluminava com a vela alta. Dava alguns passos, "que tal o doutor?
Como está o senador?” e ocupava o colchão de crina.
Fome e sono não andam
sempre juntos e nas noites pensávamos em boa comida. Patos e marrecos, dourados
fumegantes ao molho de camarão, churrascos sangrentos, orelhinhas de leitão,
bem torradas, passavam pela sala de jantar, onde dormíamos. Quando o sol
chegava, corríamos por entre os destroços, sobraçando ás bugigangas para o
depósito de Almansor.
Já estávamos
acostumados à vida mansa quando os homens vieram. Vico se chateou e com razão.
Na véspera decidimos limpar o sobrado ("essas demandas duram muito, a
gente pode ficar aqui, quem sabe, até um ano. Vamos matar estes ratos, esfregar
o encardido dos banheiros, desembaçar os vidros das janelas") e demos
duro. Foi nessa limpeza que encontramos a libra de ouro, enrolada na madeixa de
cabelos castanhos. Uma bela moeda vitoriana que pagou a viagem dos três para o
Rio de Janeiro, depois do despejo.
Os homens que vieram
não vinham em nome da Justiça, mas dos
herdeiros. Retiraram os quadros das paredes, começando pelo da senhora;
juntaram os livros de qualquer jeito, desatarraxaram maçanetas e torneiras de
bronze. Quando entraram e nos viram, perguntaram quem éramos. Vico engrossou:
“Nós somos os tais.
Vicente de tal, Pedro de tal, Manuel de tal. Tomamos conta do sobrado. Quem
mandou tomar conta? O sobrado."
Depois que vendemos a
moeda, dividimos a madeixa em três trancinhas, tecidas por Vico. Cada um de nós
estava certo de que eram cabelos da senhora de espartilho.
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