22 de abr. de 2013

ESTÓRIA DE DOMINGO-AQUELA MANHÂ DE SETEMBRO


   
  
     Não haverá manhã como aquela, em nenhum dia que vier ao mundo. Disso meus olhos sabem e sabe o meu coração. A noite me apanhara na entrada do povoado, que percebi pelas luzes fracas, algumas de lampião a querosene, outras, tênues e hesitantes, na certa de lamparinas de óleo de mamona.
    Eu perdera a estrada mais larga, que levaria ao meu destino, talvez em instante de cochilo, e o cavalinho tordilho, o primeiro que eu tive, bandeou para a trilha. Naquele tempo, supersticioso, eu sempre acreditava que era melhor confiar o destino ao acaso. Quem quiser achar-se, que se perca, era a frase que me servia. Tinha minhas razões: ao desviar-me da rota, havia escapado de tocaias e tempestades, de andaços de doença e até mesmo de onças, e disso soube depois.
    Fui seguindo a sombra da tarde, o que me levava ao leste, o que contrariava minha tenção, mas segui o focinho do tordilho, para o qual ainda não arranjara nome. O que me disseram que tinha antes, Borboleto, não me agradava. Ainda se fosse égua, e se chamasse Borboleta, ia bem; mas macho inteiro e sério,  esse nome era uma ofensa ao bicho, dócil no passo, mas esquentado no trote e no galope.
    Com a noite chegando, já preparava o corpo para pernoitar na estrada e buscava um lugar no jeito para espichar o baixeiro e fazer cama, quando um clarãozinho de nada, por cima do morrinho, me deu esperança. Fui em frente, tocando de leve com a tala no lombo do bicho, para que se apressasse, e percebi as luzinhas. Não foi preciso mais: ele, talvez cheirando o ar, trocou o passo pela marcha, e chegamos ao povoado.
     Todas as portas estavam fechadas, mas não há lugar, por pequeno que seja, sem um comercinho que fecha mais tarde. Depois de recensear um pouco as duas ruas, vi a porta escancarada. Cheguei e me indicaram a casa da moça  que dava pouso aos passantes, e era recatada com os do lugar. “Ela não gosta dos homens daqui, diz que todos eles são seus parentes, mas não é a mesma coisa com os de fora”, informou o dono do botequim, antes de me servir uma cachaça curtida em cipó-cravo.
     Hesitei um pouco, antes de bater à porta. Um leve sobressalto parecia prevenir-me - quem sabe? - de uma emboscada. Refiz-me e bati à porta, e dentro não havia luz. “Espera um pouco”, ouvi, mas continuava a escuridão, quando ela vestida com uma camisola pesada e comprida, abriu a porta e me levando pelo braço, empurrou-me para dentro de um quarto de solteiro. “Tem uma lamparina aí dentro, você tem fósforo?”
      Saiu e entrou para seu próprio quarto, ouvi o ferrolho ser passado. Duvidei da informação do dono da birosca. Ela não gostava também de estranhos.
      Cansado, tentei ainda ficar acordado, esperando que ela fosse ao meu quarto, mas dormi. Acordei com todos os galos do povoado cantando ao mesmo tempo. A luz da madrugada entrava pela beira do telhado sem forro. Saí para o quintal, havia uma bica; depois de outro ato matinal, impositivo, entre duas moitinhas de cambará, lavei o rosto e molhei os cabelos.
      Ela, então, apareceu, morena, com os olhos negros mais belos que eu jamais vira, e me convidou para contemplar o amanhecer pela janela de seu quarto. O quarto destoava do resto da casa, pintado de azul e acortinado. Abriu a janela, desfazendo o laço da cortina, e o sol começou a levantar-se sobre uma serrinha que eu não vira. Do que se passou, cavalheiro que sou, não dou detalhes. Deixou-me descansar dos meus deveres de hóspede e me preparou o prato modesto de ovos com torresmos e feijão machucado, e me disse que a manhã acabara, e eu devia seguir viagem – mas não me indicou destino.
     Aquela foi a mais bela manhã que meus olhos viram.

3 comentários:

Edson Beú disse...

"Eis o homem", plagiando o nome de um de seus belos artigos, blindando-nos a contundência com outra sessão de poesia. Afinal, um sarau não faz mal a ninguém, nem ao mais taciturno coração.

Beú disse...

Mauro, a mensagem anterior foi um "brinde" com uma taça de vinho (e não um blinde) que fiz, para dizer que estou ligado, seguindo as suas aulas. Depois quero lhe levar um exemplar da segunda edição daquele livro que vc valorizou com seu belo prefácio.
Abraço,

Mauro Santayana disse...

Muito obrigado, Beú, estou aguardando. Um forte abraço.