Levou cinqüenta anos para descobrir seu próprio mistério, mas
já era tarde para reendereçar o destino. Ao longo da vida, os quadros da
memória se confundiam com as gravuras vistas quando menino; não sabia certo se
eram cenas alheias ou vividas: o carro-de-boi, os cobertores vermelhos e azuis,
o lenço de seda cobrindo a cabeça do homem de dentes de ouro e bigode com a
ponta afinada. O homem tinha a cara de pirata, ou o pirata na capa de "A
Ilha do Tesouro" tinha a sua cara? O carro-de-boi era real, real o rinchar
de seu eixo cocão, ou tudo aquilo eram memórias dos outros, enfiadas em seu
nebuloso mundo?
Havia aceitado, com algum entusiasmo, a identidade que lhe
deram. Era bonito saber-se órfão de pessoas belas e jovens, mortas no acidente
de trem. Ali estava o retrato dos dois, pintado com esmalte: rosto com rosto,
ela, com as sobrancelhas finas e altas, como era a moda; ele, de gravata com
losangos. Tudo falso.
Agora, ao saber da verdade, perguntava-se de onde teriam vindo
os pais do retrato. Possivelmente, os velhos o haviam encontrado em algum
bric-a-brac, e um deles teria comentado: "Olha, até que se parecem com o
menino, vamos levar?” Estariam vivos ainda os pais-de-retrato? Talvez, e se
soubessem de quanto ele os havia querido amar, ficassem comovidos. Mas faltam
ao mundo os anjos comunicadores. Ele mesmo, quando ouvia falar no trem que se
despenhara e fora engolido pelo mar (era a versão) , fazia força para imaginar
os pais vivos, resgatados por um barco estrangeiro, vivendo longe, talvez na
China ou na Mongólia, e ajuntando dinheiro para voltar. Se houvesse um anjo
comunicador de sentimentos, ele poderia ter sido filho perdido que talvez faltasse ao casal da
fotografia: debaixo de seus olhos havia uma sombra de carência.
Agora sabia a verdade. O carro de boi, o homem de lenço amarrado
à cabeça, a fogueira perto da lagoa, o pé ferido e inchado e a folha de
desconhecida erva usada como curativo, tudo era real. Mas se falsos eram os
pais-de-retrato, e os outros, os verdadeiros?
“Agora, que não tem mais remédio, e o senhor já tem netos, vou
lhe contar todas as coisas direito", disse dona Afonsinha. E lhe falou da
morte da mãe, de parto mal curado, o desespero do pai, meio adoidado, que troca
o filho pelos trens de ferreiro com os ciganos, e passa os meses seguintes
tentando forjar turbinas de moinho de água.
Até os três anos viveu
entre os zíngaros, e desse tempo vinham as fortes e confusas lembranças. O
carro de bois, o seu chiar continuado, uma noite de muitos tiros, certa manhã
em que viajava no surrão de uma jumentinha, debaixo de cajueiros, e um caiu lá
dentro, cheiroso, bem maduro. O cigano de pano na cabeça cortando cebola com a
faca da cintura, a mulher que tinha cheiro de fuligem, os cachorros que
saltavam de um lado a outro da fogueira, a carne assada em espetos de ferro, o
brilho dos tachos de cobre quando neles batia o sol da manhã. Não eram
gravuras, dos livros da fazenda, mas a sua vida de menino. Por que o
revenderam?
A senhora do segredo narrou-lhe, então, o episódio de que não se
lembrava de todo: as tropas do tenente Fonseca despejando fogo, com ordem de
matar a ciganada que infestava o baixo Jequitinhonha, depois da morte, a
machadinha, de um sargento em Rio do Prado. A ajuda dos praças baianos, vindos
de Ilhéus, e armados de mosquetão curto, de tiro mais seco e mais preciso, para
ajudar no acabamento daqueles ladrões de cavalo e de crianças. Os três meninos
deixados na fuga, no arraial sem nome, pelo cigano Inácio, que era maneta.
“Os três ficaram na cafua de uma negra sozinha. Depois o herege
voltou, pegou dois dos meninos, que ele achava que eram arraçados de ciganagem,
e vendeu o outro por cinqüenta mil réis. O coronel comprou, a mulher dele, em
glória sempre esteja, ficou satisfeita; era de barriga miúda, não tinha filhos,
não sabia fazer crochê, nem entendia de criação" – resumiu a velha.
Ele retirou do bolso o maço de notas, colocou debaixo do travesseiro
da mulher que, agonizante, o mandara chamar, e disse, na saída, ao velho que
enchia o cachimbo, ter deixado um ajutório. O velho agradeceu:
– Vai ser no jeito pro
enterro. De hoje não passa a agonia, o padre garantiu. O que foi que ela queria
falar para o senhor, hein?
O deputado olhou para o seu próprio retrato com a propaganda
eleitoral na parede, e respondeu, sério:
– Segredo, Juca. Segredo.
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