21 de mai. de 2013

ESTÓRIA DE DOMINGO - NINHO DE ESTRELAS.



Nossa era a cidade inteira, com suas praças e ruas, becos e pontes. Todos se haviam ido, e levado bois e cabras, cães e pássaros. Ficaram alguns gatos, que nos espreitavam sem curiosidade. Algo nos haviam deixado, na pressa, e isso bastava para muito tempo. Até que se acabassem os restos das despensas, eu poderia armar mundéus e colocar fis­gas de espera na lagoa: não nos preocupássemos.

"Eles vão voltar. Quando passar o entusiasmo, voltam. Isso é fogo de palha", você me dizia, e eu fazia figas mentais. Tomara que ali houvesse ouro para séculos, e abandonada para sem­pre ficasse Santana das Areias. Er­gueríamos muros de pedra para cerca-­la e, se Deus nos desse anos de paz, cresceriam árvores que a escondes­sem.
Quando nos chamaram, dissemos que seguiríamos. Lembro-me de que insistiram para que fôssemos juntos, porque perderíamos o caminho, e você disse que nem dez chuvas apagariam rastos de tanta gente. Um deles, se não me en­gano, o coveiro, deu uma banana para a cidade, e disse que jamais seus pés voltariam a pisar lugar tão amaldiçoado. Quando a tarde chegou, sentamo-nos no adro da Igreja e você, como menina, pulando sobre uma perna só, foi ao sopé da torre tanger o sino. "Vou sempre tocá-lo, na hora do Ângelus, para que não nos falte a proteção da padroeira." Eu concordei, mas lhe disse que fi­caríamos ali tanto tempo que se esgarçaria a corda e não poderíamos subir os estreitos degraus espetados na parede. "Estaremos velhos demais", eu disse, e você replicou que nunca seria velha.

Nas manhãs seguintes fizemos o recenseamento das coisas deixadas. Foi quando você teve a idéia de juntá-las em razão de sua natureza e serviço. Uma das moradias ficou sendo “a casa dos lampiões”; a outra, “o lugar dos pratos e panelas”. Mas deixamos as redes e tarimbas, camas e jiraus, em seus lugares. A cada noite escolhíamos onde dormir. Buscávamos as candeias, lampiões e lamparinas, porque tal era nossa riqueza que podíamos iluminar o  pouso com luzes por dentro e por fora. "E como se a gente fizesse um ninho de estrelas”, você disse, eu me lembro. De longe, talvez, os pássaros noturnos se espantassem. Mas não iriam as cobras perturbar-nos. Aliás, para afugentá-las tínhamos as corujas, e você lhes arranjou nomes. Uma delas, que parecia a mais velha, recebeu o nome de dona Sabina,  sua antiga professora, de sobrancelhas brancas e pouca pes­tana.
Os dois pequenos jardins, simétricos,  que embelezavam o adro de calçado de pedra , cada um deles com dois bancos fronteiros, passaram a ser o espaço de nossas tardes. Ali sentávamos, lembrávamos,  eu muito mais do que você - poupada a intimidade da crônica indesejada de seu passado -  a infância que não tivéramos, os bichos com quem tratáramos, as pedras e árvores, rios e nascentes dos caminhos. De gente, falávamos muito pouco. A que conhecêramos não era de recordar-se.
Você evitava passar pela casa antiga, onde a encontrei duas semanas antes do estouro. Era a única edificação que você queria destruir, e para isso procurou dinamite na pedreira – mas eles  haviam levado todas as caixas, para usá-las, se fosse preciso. Quando falei em levantar o muro, você disse que ia ser bom, porque "aquela casa”, em que ela vivera, ficaria fora da cidade. Suas companheiras haviam subido para as nascentes do ouro, onde esperavam ficar ricas. “Você já pensou que também fizemos um grande negócio? Quanto valerá em ouro esta cidade? O mundo deve ter também outras cidades abandonadas por pessoas que procuram ouro, mas a gente só descobre isso quando a gente se ama muito. Quando o amor vale mais do que o ouro. Nós ficamos, e temos a paisagem toda durante o dia, as es­trelas todas durante a noite, e temos tantas casas como os dias de um ano inteiro” - você me disse,  e eu fiquei surpreso com sua sabedoria. É possível que você tenha usado outras e mais simples palavras, mas o tempo as lapidou em meu coração.
Chegáramos, você primeiro e eu depois, escorraçados de muitas outras cidades, e, como sempre, sabíamos que não poderíamos ali viver por muito tempo. Você, com a novidade de seu corpo de menina, uma escultura brônzea, e eu com a agilidade dos dedos no baralho novo, esgotaríamos logo o mercado, não fosse aquele estrondo distante, e a enxurrada de pepitas pelo rio abaixo. Talvez um dia  os desiludidos voltassem. Teríamos que desmanchar os caminhos, pedir aos cupins que os tapassem com seus castelos, semear moitas de cambará e unha-de-gato nas encruzilhadas. Ensinei-lhe o que sabia, e o que mais aprendeu foi atirar: entre sua pupila e o alvo, as balas não hesitavam.
 Um dia encontrei você chorando. "Não fica triste comigo não, mas faz muitas semanas que você não me conta nada de diferente. Eu acho que agora conheço você todo, isto é, você já é meu  inteirinho, por isso não o quero mais. Você sabe: a gente só quer enquanto não tem tudo, e você foi bobo, não me negou nada.”
       Despedi-me, com um casto beijo entre seus olhos, e parti. Você saberia cuidar-se, com a arma que lhe deixei. Presumo que depois de conhecer a cidade inteira, você tenha partido também.

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