Quando os anos se juntam, a memória passa a
ser filme que se remonta sempre e sem critério: não posso dizer, com certeza,
onde se encontra a estrada de poucas léguas, nem se todas as lembranças me pertencem. Com os anos se amontoam os
caminhos, bifurcam-se e se cruzam, e há mesmo os que retornam em círculos
contínuos. Tal como os dias, sempre debaixo do mesmo sol, os caminhos estão
sobre o mesmo solo, e rasos; estreitos e curtos são os caminhos subterrâneos,
que Deus nos salve.
Era estradinha arrumada em
cascalho miúdo e vermelho, e saía da rodovia escondendo-se atrás de um morro
vestido de candeias e canela-de-ema. Logo depois da curva estava a meia-ponte:
apodrecera a viga lateral direita e caíra, era o que deduzia, arrastando as pranchas
pela metade. Viam-se as suas pontas, com as fibras agudas, espetando o ar.
Restavam os dois troncos de guaribu, o da
esquerda e o do centro, e pareciam
petrificados pela necessidade de pagar pela fraqueza e deserção do outro, que,
esfacelado, jazia no fundo do córrego. Se a estrada estava tão bem cuidada,
com touceiras de capim santo plantadas para o adorno das beiras, por que não
consertavam a ponte? Uma resposta veio bem adiante, depois de outros espantos,
pelo serrador que abria ao meio um pau-d'arco:
“Esses consertos nunca dão certo. Se a
gente puser uma tora nova do lado direito, o lado esquerdo vai cair. Cristo,
que entendia de madeira, porque o padrasto era carpinteiro e o pai é arquiteto,
disse que não se põe remendo novo em pano velho.”
A melhor resposta veio depois. Logo
passada a ponte, ou a meia-ponte, estava o estranho edifício vergado, e seu
construtor entristecido. “Faz muitos anos que eu tento, e já gastei nisso
minhas boiadas, e não consigo fazer a torre dos 1.728 degraus. Eu tive uma
visão e sei que se fizer a torre nessa altura poderei chegar ao céu.”
Eu lhe disse que, faz muitíssimos anos,
outros homens quiseram fazer o mesmo e Deus os confundiu torcendo-lhes a
língua.
“Vê, ali ao lado? Primeiro tentei com
pedras e não foi além do primeiro vão de 12 degraus. Achei então que era melhor
fazê-la em bambu, que é leve, mas veio o vento que aqui a gente chama de
galopeiro, e eu já estava no terceiro vão. Agora, o senhor vê: com esteios dos
melhores, estou nas cinco dúzias e a torre está entortando.”
Perguntei-lhe
por que fazia a conta dos degraus em dúzias e ele explicou que, de acordo com
sua visão, devia construir uma dúzia de dúzias de dúzias, o que queria dizer
uma grosa de dúzias ou uma dúzia de grosas. Eu então lhe disse que fizesse como
os egípcios e construísse uma pirâmide. Porque a pirâmide, acho que foi isso
que pensei então, é ao mesmo tempo torre e ponte, e o que é uma torre senão
uma ponte inconclusa? Ele então fez suas contas e disse que precisaria de
muitas pedras para começar com uma base de 1.728 pedras de cada
lado do quadrado e chegar à coluna central e imaginária da pirâmide de 1.728 pedras . E olhou
esperançoso para o imenso rochedo ao longe.
Deixei
o homem diante da torre que se vergava e encontrei a mulher fiando, o jogador
com o baralho de cinco naipes e o rapaz que assava espigas de milho. Estavam os
três de frente para a estrada, como se estivessem sobre uma grande e
movimentada praça. A muIher cantava uma
décima sertaneja, que falava em flor de maracujá; o jogador punha sobre a mesa
os cinco naipes; o quinto era de círculos azuis. E o rapaz que assava milho
esfregava as mãos, com frio.
Quando
cheguei à aldeia, entardecia. Conversei com o serrador de toras, que estava à
porta ,do povoado, e perguntei por pouso. Recomendou-me uma estalagem de uma
família cega e advertiu-me de que devia levar algum candeeiro.
“Eles
não usam luz e eu acho mesmo que, sendo cegos de nascença e sempre vivendo
aqui, onde as pessoas são naturalmente reservadas, nunca se deram conta de que
é preciso iluminar a noite para os outros. Por isso leve este castiçal e esta
vela de sebo."
Na
manhã seguinte o jogador de naipes indicou-me o caminho, sinuoso, esguio, que levava à estrada principal, e que, em
certos trechos, eu devia percorrer engatinhando, porque, do contrário, eu o
perderia.
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