(Carta Maior)-Podemos iniciar lembrando uma série de
obviedades. Quando Deus, ou o acaso, fez
o homem, deu-lhe o livre-arbítrio. Os homens, juntos, fazem o povo. O povo,
portanto, tem o livre arbítrio de todos os indivíduos que o compõem, ou, como é
possível aferir, da maioria dos eleitores. Com esse livre-arbítrio, os homens construíram um sistema de convívio a que
chamamos Estado. Para administrar o Estado, organizou-se a política. A
experiência mostrou que, em benefício da ordem e da coesão da sociedade, era
melhor dividir o Estado em Três Poderes. O
mais importante deles, desde o início, foi o Legislativo, composto de homens do
povo, e destinado a elaborar as leis, conforme a vontade e o interesse da
maioria, depois de discussões amplas.
Assim, é o poder legislativo que, ouvindo os
cidadãos, impõe a forma do regime político, garante os direitos de todos à
liberdade e à isonomia, limita-os em benefício da coesão da sociedade e do
exercício da justiça, diante da qual todos
são iguais.
O Sr. Gilmar Mendes, ministro do Supremo
Tribunal Federal não se sabe bem para quê, quer inverter a ordem milenar dos
poderes do Estado, e colocar o Judiciário como o mais elevado deles. Ora, se
há poder dependente dos demais é
exatamente o Judiciário.
Em nosso sistema, ele depende do arbítrio do
Executivo, que indica os seus membros, e do Senado, que os aprova, ou rejeita.
Mas depende, acima de tudo, do Legislativo que, ao aprovar as leis, entre elas,
as penais, impõe-lhes o módulo de seu poder.
Os Estados Unidos construíram o seu
sistema, em parte sob a influência clássica da República Romana; em parte sob
as idéias democráticas inglesas de Locke e outros de seus contemporâneos; e, em
parte, das idéias federativas das
Províncias Unidas dos Países Baixos.
A Suprema Corte norte-americana
resolveu aproveitar-se desse período de discussões e indefinições da república,
e seu presidente, John Marshall, que era político, arrogou ao tribunal o
direito de arbitrar, em última instância, a constitucionalidade dos atos do
Executivo e do Legislativo.
Foi uma decisão americana, conforme as
circunstâncias do tempo, mas contestadas por três dos maiores presidentes dos
Estados Unidos: Lincoln, Andrew Jackson e Franklin Roosevelt. O caso de Jackson
é bem conhecido. O presidente se negou a proteger os banqueiros, com seu famoso
Banking Veto, e peitou a Suprema
Corte, negando-se a rever sua posição. Roosevelt também desobedeceu à Suprema
Corte, a fim de impor o New Deal, e,
sob a ameaça de obter do Congresso o aumento do número de juízes e a
aposentadoria dos mais idosos, conseguiu um acordo político que favoreceu a implementação do plano de
recuperação da economia americana.
Para o nosso raciocínio, o melhor exemplo é o
de Lincoln. Logo no início da Guerra de Secessão, o presidente, depois de ouvir
seu procurador geral, decidiu suspender o direito de habeas-corpus, invocando
dispositivo constitucional que abria essa exceção, no caso de rebelião.
Sob
a decisão, o comandante militar da cidade de Baltimore, determinou a prisão do
tenente John Merryman, da milícia estadual, acusado de colaborar com os
sulistas.
Merryman apelou para o Juiz Roger B. Taney,
que acumulava seu cargo de Presidente da Suprema Corte com o de juiz federal no
circuito de Baltimore. Como juiz federal, e não da Suprema Corte, ele concedeu
a ordem, determinando ao comandante militar que
libertasse o prisioneiro imediatamente. A ordem foi recusada, com as
informações do caso ao juiz, que a reafirmou, determinando a um delegado
federal que fosse ao forte e prendesse o próprio comandante.
O
delegado não se atreveu a entrar no forte. Taney, então, e já atuando como
Presidente da Suprema Corte, determinou a Lincoln que libertasse o prisioneiro,
e submetesse ao seu tribunal a ordem de prisão de novos acusados de traição –
o que o grande Presidente simplesmente ignorou.
Logo em seguida, o Congresso deixou claro o
direito de o Poder Executivo negar-se a atender à Justiça, enquanto perdurasse a
Guerra Civil.
Na defesa do Estado republicano, Lincoln agiu
assim até a morte de Taney, em 1864, quando nomeou, para substituí-lo, o juiz
Portland Chase.
Acrescente-se que Taney,
considerado bom juiz em outras decisões,
era adversário político de Lincoln, e escravocrata convencido da inferioridade
dos negros. Dele é a opinião escrita, no famoso caso Dred Scott v. Sandford, uma das causas da guerra civil, de que “os
negros não têm quaisquer direitos que os homens brancos sejam obrigados a
respeitar - ( blacks) had no rights which the white man
was bound to respect)”.
O
ministro Gilmar Mendes decidiu - conforme a lúcida análise do professor
Virgílio Afonso da Silva - que está acima de todos os poderes, incluído o
próprio judiciário, determinando, a
priori, que o Congresso não
discuta projeto de emenda constitucional
sobre o Poder Judiciário.
Ora, o Congresso pode discutir tudo, e aprovar
o que sua maioria decidir, de acordo com a Constituição. O Congresso é o povo –
com suas virtudes, sua força e sua debilidade – reunido para decidir tudo o que
lhe diz respeito. Há mais: em muitos países, e mesmo nos Estados Unidos, a
pátria de John Marshall, a Suprema Corte não discute a constitucionalidade das emendas,
uma vez que, aprovadas, passam a integrar a própria Constituição e, como tal,
devem ser respeitadas e cumpridas pelo Poder Judiciário.
Acresça-se o fato de que a emenda não foi
ainda discutida amplamente, e pode, eventualmente, até mesmo ser rejeitada.
É
certo que o nosso Parlamento não é o melhor do mundo, nem o pior. É o que
temos. E mudá-lo é tarefa dos cidadãos, não do Poder Judiciário, e menos ainda do
Ministro Gilmar Mendes, cujo comportamento tem sido estranho, não só em algumas
decisões, como pela sua estreita amizade com homens do estofo moral de
Demóstenes Torres.
É
lamentável que alguns senadores o tenham visitado, para dar apoio ao seu
propósito estapafúrdio.
O professor Virgílio Afonso, além dos
méritos de seu desempenho acadêmico, possui
outra referência moral a ser destacada: é filho do jurista José Afonso
da Silva, por sua vez filho de lavradores pobres do interior de Minas, que
trabalhou como alfaiate para custear seus estudos em São Paulo , e se tornou
um dos mais respeitáveis constitucionalistas brasileiros.
Gilmar, nós sabemos, é Gilmar. Nem
mais, nem menos.
2 comentários:
Quem foi que falou "manicomio judiciario"? Gilmar Mendes. Por que ele falou isso? Porque ele, Gilmar Mendes, deve ser o alienado mental numero um (number one) desse manicomio.
Paula Portela
clap-clap-clap-clap-clap...
tem horas que as palavras, de fato, vale...
clap-clap-clap-clap
dos poucos textos em que leio em que reconheço a sobriedade e a firmeza em defender ideais sem temor e sem pejo; verdadeiro jornalista
bato palmas
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