(JB)- Há duas definições clássicas para a
ordem social: a do relógio e a da balança. Na primeira delas prevalece a
vontade daqueles que ocupam o Estado, e que acreditam serem perfeitas as idéias
- quase sempre de fundamentalismo teocrático - que aplicam, na legislação e na
coerção social.
O
Estado é o relógio com suas engrenagens bem lubrificadas, que não admitem intervenção,
a não ser para mantê-lo funcionando, dentro das previsíveis oscilações do
pêndulo. É o sistema totalitário, no qual as estruturas sociais permanecem
imóveis, cada classe em seu lugar, com a reprodução dos poderosos dentro dos
clãs oligárquicos de domínio, e a dos explorados no chão comum que convém ao
sistema.
A imagem da balança corresponde à
ordem, vamos dizer, democrática. Os pratos oscilam, conforme as circunstâncias,
mas é necessário que se busque o equilíbrio. O encontro do equilíbrio é a mais
antiga das aspirações das sociedades políticas. É nessa tensão entre a esquerda
e a direita - se permitem o respeito à lógica - que a civilização se moveu e se
move.
Em
seu indispensável ensaio, sobre a História de Roma desde a sua fundação, Tito
Lívio mostra que a grandeza da República se explicava no confronto criador
entre a plebe e o patriciado, com a garantia de que, pelo mérito, os plebeus
pudessem ascender ao consulado, mediante o voto, como no caso emblemático de
Caio Mário.
O
confronto foi, durante os melhores tempos, o fiel da balança, até que,
liquidada a República, o regime de Augusto se perverteu, encaminhando o Império
à decadência.
A deterioração geral do Estado que se
identifica como democrático se funda na verdade incômoda de que não temos, a
rigor, sistema democrático no mundo. Temos alguns sistemas republicanos
melhores do que os outros, mas, em nenhum deles vigora a democracia real. O que
temos é um sistema de oligarquias plutocráticas, organizadas hierarquicamente,
no plano nacional e no plano mundial, em torno de um centro de mando único,
efetivo por ser implícito, que não precisa dar as caras para ser obedecido.
O
mecanismo de controle é o sistema financeiro, com seu braço visível (embora
apodrecido) dos grandes bancos e a ala mais ou menos clandestina, e tolerada,
dos paraísos fiscais. É o poder financeiro que, normalmente, domina o mundo
acadêmico e encabresta os intelectuais, mediante honrarias e dinheiro vivo; que
supre de recursos e de teóricos os partidos políticos clássicos; que escolhe os
candidatos aos cargos públicos e os elege, por meio do financiamento das
campanhas eleitorais.
É de
se lembrar que, com o advento da burguesia mercantil e industrial, a partir do
século 16, iniciou-se certo movimento intelectual que encontraria nos dois
séculos seguintes - com a Revolução Inglesa de 1642 e a Revolução Francesa de
1789 - a clara intenção de recuperar a idéia democrática da Antiguidade. Mas
esse esforço se debilitou, com a perversão do Iluminismo pelo liberalismo,
quase escravocrata, da chamada Revolução Industrial.
Todos nós estamos de acordo em que as
comunicações eletrônicas de nosso tempo abalaram todas as formas de autoridade,
seja no campo do poder político, seja no campo do conhecimento. Ainda que a
informação não seja inteligência, ela pode suscitar, e suscita, mesmo nos menos
dotados, o raciocínio que pode gerar a sabedoria. Uma coisa, no entanto, é
certa: para o bem e para o mal, a força da autoridade está em erosão no mundo,
de Pequim a Washington.
Apanhados de surpresa pela rebelião
anárquica das ruas, com as confusas e muitas vezes contraditórias bandeiras, os
políticos estão reagindo sob o medo, quando deviam agir com sensatez. É preciso
ouvir as ruas, mas não ouvir os despautérios dos néscios ou alucinados.
O nosso sistema presidencialista não
dispõe de válvulas de escape contra as crises políticas, como delas dispõe o
sistema norte-americano, moderado pelo poder constitucional do Congresso e pela
força da federação. Mas seu poder judiciário foi cúmplice da fraude eleitoral
na Florida, que deu a vitória a Bush filho.
Isso sem falar nos regimes
parlamentaristas, nos quais as crises políticas se resolvem pela destituição
dos gabinetes e formação de novas maiorias. E quando há o impasse, o Presidente
da República intervém, nomeando governos de emergência. Isso, no entanto, não
garante a democracia: algumas das piores ditaduras nasceram, cresceram e
sobreviveram nos regimes parlamentaristas.
Voltam a defender, entre nós, o sistema
de listas fechadas ou, em versão mais moderada, o sistema misto, para a eleição
dos vereadores, deputados estaduais e federais. Não se vota no candidato, mas
no partido. No sistema misto, vota-se duas vezes, na lista partidária e no nome
escolhido. Não é difícil estabelecer distritos eleitorais, mesmo mantendo-se o
presidencialismo, como ocorre nos Estados Unidos. Mas os problemas de fundo,
como os da legitimidade, permaneceriam, enquanto não houvesse igual acesso de
todas as idéias e de todos os candidatos aos meios de comunicação. E democracia
supõe o voto de uma pessoa em outra pessoa.
Enfim, precisamos descobrir os meios de
recuperar o ideal democrático, aqui e no mundo. E só temos dois meses para
preparar e realizar, no país, o plebiscito anunciado. É necessário que todos os
homens de boa vontade, do governo e da oposição, se unam no esforço em favor do Estado democrático
de Direito,e de nosso povo.
Artigo brilhante, como sempre. Mas a crise da "democracia" estaria diretamente ligada à crise do sistema industrial?
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