American Sniper, o filme.
Primeiro à esquerda, em Stalingrado, Vassili Zaitsev.
(Revista do Brasil) - Se o Egito Antigo deixou as pirâmides e Atenas e Roma seus templos e anfiteatros, o império norte-americano sobreviverá, talvez, mais pela memória dos sóis instantâneos de Hiroshima e Nagasaki, e pelo brilho evanescente de seus mitos, criados à sombra das salas de cinema, do que pela arquitetura de aço e concreto de seus arranha-céus.
Louis Wiznitzer, brasileiro, correspondente de jornais francófonos nos Estados Unidos, nos anos 1960 e 1970, gostava de citar uma frase que ficou famosa, atribuída ao membro dos Panteras Negras H. Rap Brown: “Este país nasceu da violência. A violência é tão norte-americana como a torta de maçã”, para explicar que os negros deveriam libertar-se da opressão por “todos os meios”, violentos ou não.
Autor de biografia famosa, com o nome de Morra, Negro, Morra!, H. Rap Brown foi condenado pela morte, no ano 2000, de um policial negro, Ricky Kinchen, e cumpre pena de prisão perpétua.
A violência encontra-se historicamente enraizada, no entanto, não apenas dentro do seu território, mas também na relação da república dos Estados Unidos da América com outros países, e talvez seja essa a razão do fascínio que ela exerce em sua sociedade, na política e na cultura.
A violência também caracteriza o cinema típico norte-americano, das “séries” de TV aos westerns e filmes de gângster e de guerra, que retratam a relação da sua população com cada época, e a visão que ela tem de si mesma, e do restante do mundo.
Esse é o caso do filme American Sniper, campeão de bilheteria deste início de 2015, nos Estados Unidos, baseado em best-seller de Chris Kyle, um ex-membro de “forças especiais” na Guerra do Iraque.
Branco, cristão e republicano, incensado pelos radicais do Tea Party, Chris Kyle não foi, ironicamente, morto por um terrorista contrário às intervenções norte-americanas no Afeganistão ou no Oriente Médio. Mas por um soldado compatriota, “branco” e “convencional”, o ex-marine Eddie Ray Routh, condenado também à prisão perpétua pela morte de Kyle e de outro ex-soldado, Chad Littlefield.
Se a história de H. Rap Brown e de Ricky Kinchen reflete as contradições da luta pelos direitos civis e a questão racial, a de Chris Kyle, Chad Littelfield e Eddie Ray Routh é emblemática da espetacularização e “patriotização” das relações exteriores norte-americanas.
Em seu livro American Sniper, Chris Kyle afirma ter matado, no Iraque, 160 pessoas, entre elas uma mulher que carregava em um braço uma criança e, no outro, uma granada. Quem é o herói? O invasor que ataca o território alheio, ou a mulher que é atingida ao proteger sua pátria, colocando em risco a vida do próprio filho? Em tempos em que as crianças aprendem a matar em jogos de computador, nunca é demais lembrar que, por mais eficaz que seja militarmente, o sniper é basicamente um covarde, combate de longe, em condição de desigual vantagem contra o inimigo.
Por essa razão, para nossa geração, o maior franco-atirador da história continuará sendo não o herói de American Sniper, o “O Diabo de Rahmadi”, mas Vassili Zaitsev, o soviético que matou 242 soldados e oficiais alemães na Batalha de Stalingrado. Camuflado em uniforme branco, que naquele inverno de 1942 se confundia com a neve, e armado com um rifle Mosin-Nagant com mira telescópica, Zaitsev matou soldados aos quais se opunha ideologicamente, que haviam, com armas potentes e modernas, invadido o seu país, e que ao sair do território da União Soviética, escorraçados e perseguidos pelo Exército Vermelho, deixaram rastro de tortura, estupros e 20 milhões de mortos, a imensa maioria civis.
No Antigo Testamento, Jeová pede a Moisés que grave, nas Tábuas da Lei, em quinto lugar, um mandamento que deveria ter sido o primeiro. Afinal, se Deus fez o Homem à sua imagem e semelhança, a melhor maneira de amá-lo sobre todas as coisas é amar e respeitar o Deus que reside nos outros seres humanos. “Não matarás”, poderiam dizer alguns, talvez, a não ser que o faças quando em defesa da tua pátria.
Chris Kyle, que afirma ter “cumprido seu dever”, matou 160 seres humanos não para defender seus filhos, seu sangue, ou a sua terra, mas sob uma desculpa hipócrita, de que havia armas de destruição em massa no Iraque, jamais encontradas até hoje.
Ferido no final da guerra por um morteiro, o capitão Vassili Zaitsev, um pastor das montanhas que, depois do conflito, trabalhou em uma fábrica como operário, nunca foi atingido por outro soldado russo.
Morreu em 1991, em sua cama.
2 comentários:
Ótimo texto/análise.
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Muito boa avaliação!!!
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